Sunday, August 28, 2005

Outono Estival

Os dias têm nascido frios. As noites esquivam-se para dentro dos lençóis, escorrem por entre os corpos, espalham um frio outonal no final de Agosto.
Estava em casa, a conversar, a olhar para televisão desligada – prática corrente, nos dias de hoje. Sugeriram-me música, qualquer coisa alegre para contrastar com ambiente modorrento, com o calor que empastava os movimentos e enrolava a língua. Sentia-me fundido com o sofá, como se começasse também eu a ficar daquela cor de vinho, com as pequenas irregularidades da textura. Fui até ao leitor de música. Sugeri um, dois, três álbuns.
«Meu Deus, tu ouves música tão deprimente.»
Ouço? Nunca me tinha conta. De certeza?
Acho que ao longo do tempo me fui habituando a ser triste; acho que ao longo do tempo me fui habituado a ser triste. Lembro-me uma vez de uma citação de um livro que já não me lembro o nome. A citação, essa, tenho-a muito presente: “É natural que a beleza nos entristeça porque sabemos que é efémera.” Acho que era de Jostein Gaarder.

Não conseguíamos chegar a um consenso sobre a banda sonora da nossa conversa. Decidimo-nos por um álbum sensual, de uma cantora negra já morta. Voltei ao sofá onde me acolheram, onde me encostaram a cabeça ao peito. Sabia-me bem os movimentos do respirar e os batimentos do coração. Fez-se a noite madrugada e eu fiquei sozinho. Batucava na minha cabeça o que me tinham dito «Meu Deus, tu ouves música tão deprimente.»
Deitei-me com isso. Pensei na música que mexe comigo, naquela que me faz pele de galinha. Serei assim tão triste? Estarei assim tão impregnado com a decadência humana e com a ausência de felicidade? Não, nem nada que se pareça. Então qual a necessidade de ouvir música tão pesadona, tão visceral.
Não consegui dormir, voltei à sala e olhei para os álbuns que tinha à disposição. Resolvi-me a ouvir um que tem muito piano. Ouvi os cinquenta e dois minutos até ao fim, li o libreto dessa ópera da tristeza. Na faixa nove ouvi chorar.
Fui-me deitar, na esperança de conseguir, desta feita, dormir. Ainda não, mas também já não me conseguia voltar a levantar para mais cinquenta e dois minutos de catarse.

Por entre o estore, as luzes da rua entravam, preenchendo o quarto com sombras. Olhei para o tecto do quarto e revivi uma conversa no carro, a caminho do restaurante. Era sobre a felicidade.
Sou feliz, sem dúvida alguma. Mas gosto de música triste.
Não é contraditório nem paradoxal, as pessoas são felizes e tristes ao mesmo tempo, as pessoas têm defeitos e qualidades, as pessoas gostam e detestam.
Mas sou feliz, sem dúvida alguma. E gosto de música triste.

(Ler a ouvir “The Boatman’s Call” (1997) de Nick Cave & The Bad Seeds)

3 Comments:

Blogger Alberto Oliveira said...

Não resisti; antes de terminar de ler o teu texto já a tristeza tinha tomado conta do meu corpo, Saí para a rua e dou logo de caras com um gajo a rir-se á gargalhada. Um parvo a rir sem saber de quê ora este ehn?! E logo agora!
Acenei-lhe para se aproximar de mim; consegui puxá-lo para aquele canto da rua mais esconso e sem ninguém por perto, encostei-lhe o cano do meu revolver ao estômago e disparei três vezes. Não tugiu nem mugiu; sem um sorriso na face.
«É uma tristeza!» disse eu para com os meus botões. E afastei-me de cenho carregado e...tristonho.

4:47 PM  
Blogger segurademim said...

A música é como a roupa, gosta-se da que nos faz sentir bem ... para a escolha de ambas, opiniões de outrém são dispensáveis

8:37 PM  
Blogger Joana said...

A melancolia na música n é necessariamente deprimente. E mesmo que o fosse, a tristeza faz parte do que somos tb. Porquê fugir a isso...sobretudo quando é possível convertê-lo em algo belo?

Bjinho

9:54 PM  

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