Friday, August 26, 2005

A sala escarlate

A noite foi-se tornando longa e mais longa, cada vez mais. As vozes foram soando baixas e mais baixas, cada vez mais. Os copos já estavam vazios, cada vez mais; como se as gotas de vinho regressassem à garrafa após terem sido votadas ao abandono.

Caminhei pela casa no silêncio nocturno; ouvia pela casa as respirações sossegadas e profundas. Nem essas me traziam o devido sossego, acordavam-me, mantinham-me desperto, embrenhavam-se nos meus ouvidos como os carros a passar, céleres, na avenida, Seis andares abaixo.
Horas antes, algumas horas antes, conversava ao telefone na varanda. Varanda onde tantos cigarros fumei. Num momento em que notaram a minha ausência perguntaram
«Estás a fumar não estás?»
Por acaso não estava, mas as minhas mãos crispavam-se no parapeito de ferro verde. Sabia que as mãos se sujavam de pó naquele momento, do pó escuro, citadino. Não, não fumava.
«Estás ausente, passa-se alguma coisa?»
Observava a polícia montada, desmontada, ao lado dos dois cavalos. Para ver os cavalos, duas prostitutas tinham-se aproximado. Não traziam o ar de engate, queriam ver os animais; antes de serem prostitutas eram mulheres, pessoas. Contava isto a quem me notava ausente. Senti um sorriso, do outro lado do telefone.
«Ora, não te admires que eles estejam a conversar, antes de serem polícias, são homens.»
Ri-me. Desviei o olhar do que se passava lá em baixo. Uma quinta pessoa, aproximava-se do grupo, uma quinta pessoa masculina. Despedimo-nos.

Regressei para dentro, à sala. Sentei-me numa cadeira com assento giratório, coberta por uma pele de leopardo e tentei concentrar-me na telenovela que se via. Esforço inglório, não fui talhado para tamanha ausência de pensamentos, já não consigo ter somente parte passiva naquilo que vejo. Tive vontade de esbofetear um personagem, esticar a mão e despejar-lhe um par de latadas na cara.

E lembrei-me do último filme que vi, “De tanto bater o meu coração parou”.
Fui à cozinha, abri o armário; abri o outro ao lado e descobri o que queria. Enchi o copo com vinho e regressei à sala. Num momento em que o silêncio tomou conta de todos, liguei o leitor e ofereci a Chavela Vargas a cantar “La Llorona”. E as paredes da sala ficaram vermelhas e as pessoas ficaram boémias e o tom de voz ficou mais baixo, mais grave, mais quente, mais sussurrado e combinou-se uma conspiração.

5 Comments:

Blogger Mikado said...

Há blogs assim, que nos sussuram alto e mais alto a inesperada mas excelente surpresa de se ler o que se gostava de se ter escrito!

11:54 AM  
Blogger mdm said...

Fantástico texto e comentário!

5:42 PM  
Blogger Joana said...

O comentário da Susana traduz muito bem aquilo que se sente ao ler os teus textos.
Gosto do tom intimista que crias quando falas assim de ti...esses momentos em que olhamos a tua casa, a rua, as pessoas, pelos teus olhos apenas.Gosto muito de te ler.

Beijinho grande

9:36 PM  
Blogger Daniel Pereira said...

Andas a ver bons filmes, sim senhor.

12:23 PM  
Blogger Alberto Oliveira said...

Não sei bem porquê, mas ao ler-te imaginei-me num qualquer país da américa latina.
Não era por acaso que a "policia desmontada" vigiava o local, que uma das prostitutas era uma infiltrada, coisa que devias ter desconfiado de imediato (não cola áquela hora da noite uma prostituta interessar-se por equídeos) que a voz da Chavela salpicava a parede de lágrimas de opressão e que as revoluções começam sempre assim; com um copo de vinho conspirativo, de preferência...

11:05 AM  

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