Mesmo que feches os olhos
Mesmo que feches os olhos vais ver.
Isto porque se passou, há alguns dias atrás, bem à minha frente. Estava dentro de um carro e não sozinho, olhava pelo vidro da frente uma prostituta, que carro atrás de carro, renunciava clientes. Até os cinco homens que vinham dentro de um Honda Civic, com suspensões rebaixadas, saias e escape barulhento, que prometiam mundos e fundos e muito dinheiro e mesmo sem o dizer prometiam violência e não pagamento. Olhava uma imagem que dias mais tarde me trouxe pesadelos, horas mais tarde me trouxe pesadelos.
Era uma mulher, metros adiante tinha um chulo que conversava com outros chulos, que guardavam as suas mulheres, que as rodavam com outras mais noves e menos gastas – no seu linguajar – e que as vendiam para ganhar dinheiro, para poder ter aquele carro melhor, mais um fio de ouro ou o que quer que seja que faz um homem vender uma mulher.
A mulher renunciava todos os carros que passavam, os melhores, não vi parar nenhum carro que não se pudesse considerar um carro bom. Desejei-lhe bem, desejei pela sua sorte quando o Honda Civic parou. Dizia em voz alta, por favor não aceites, não aceites. Porque num carro daqueles com aquelas pessoas, a noite não acabaria bem. Nunca acaba, suponho eu, para pessoas assim. Umas vezes acaba melhor, outras nem por isso. Mas para quem vive assim, a noite nunca pode acabar bem. Ou acabar a bem.
Custa a primeira vez que abrem as pernas por dinheiro. Chora-se, sentem-se sujas. Depois depende-se do dinheiro ganho a vender o corpo, qualquer parte que seja, é igual. O que muda é o preço.
Pára um carro pequeno, lá de dentro sai uma outra mulher. O cigarro bem atravessado nos lábios, mal aceso pela pressa. Por cima das calças de tecido preto, arranja as cuecas. Custa-lhe o andar, não terá sido fácil esta parte da noite. Arranja as cuecas para que estas não lhe magoem mais a alma, para que a não mais a torturem quando se for deitar, quando ao céu aparecerem os primeiros alvores. À distância de poucos metros, está a mulher que renuncia os carros, que se aproxima dos vidros mas que se amedronta aquando a negociação. Faltam alguns metros e à mulher que vem com o cigarro atravessado nos lábios e a arranjar as cuecas para não a magoarem custa-lhe andar. Metros que parecem quilómetros.
Peço para ir embora dali, que já não suporto mais o abjecto espectáculo. Consigo imaginar todas as lágrimas que são derramadas quando, aos primeiros alvores, sucumbindo ao cansaço no leito.
Vejo estas mulheres nos meus sonhos que demasiado cedo se tornaram cadáveres, esqueletos da espécie humana. Pedaços de ossos sem carne. Por muito que tivesse fechado os olhos, elas voltaram. A rejeitar os carros, a fumar e a arranjar as cuecas dos abusos.
2 Comments:
Comove-me o profundo respeito que este teu texto denuncia em relação a estas mulheres. Serão poucos os homens capazes de lhes dedicar a consideração de quem olha... apenas uma pessoa, e de se afligir por elas. Sou mulher e talvez por isso sinta mais de perto este problema, e talvez por isso dê tanto valor a este texto e a ti por sentires isto assim. Bom texto. Adorei.
Pois... e infelizmente a degradação só é visível exteriormente, pois interiormente chocar-nos-ia ainda muito mais se lhe tivéssemos acesso. Pois se há um lado "podre", há um outro já muito experiente e vivido e sofrido, e ainda um outro lindíssimo assente em sonhos, desejos, recordações... de menina, de uma vida sonhada nunca concretizada, enfim...
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