Saturday, May 21, 2005

As quatro papoilas que vejo da minha janela

Hoje reparei em quatro papoilas que são agitadas pelo vento calmo que se atravessa nas traseiras do meu prédio. Hoje decidi que também ia gravar para mim a banda sonora do "Ocean's Eleven". Contrariamente ao que ontem se passava, hoje o dia levantou um céu cinzento que oculta o sol; de quando em vez as nuvens deixam-no dar uma espreitadela, só para confirmar que não houve gotejamento algum, que não houve lágrimas olímpicas.

Ontem decidi que não me apetecia sair. Fiquei em casa. Arrumei caixas, arrumei pensamentos. Pensei que devia começar por arrumar os cds, depois os pequenos objectos decorativos que nos são oferecidos ou que se trazem de viagens daqui e dali. Ou então aqueles que têm algum significado sentimental e que não queremos deitar fora. Quer dizer, eu ando a guardar a lã do laço de um embrulho que me deram no natal.
Ontem terminei também os meu trabalho como educador. Passei por ali e pronto. Deixo saudades, mas não sei se as vou sentir. Com este final de trabalho, encerro mais uma fase da minha vida; bem, não é certo que seja uma fase, quase como se estivesse a começar a escrever o último da capítulo de um livro. Depois, mais livros virão.

Passa mais uma rajada de vento e as minhas papoilas abanam-se, abanicam-se ao sabor da melodia cálida que o vento traz no ventre que roça nas sua vermelhidão. Levantei agora um pouco mais a cabeça e descobri uma nova colónia de papoilas, dezassete, estas últimas, separadas por um muro. Já descobri porque é que gosto tanto só daquelas quatro. Porque são as desgarradas, porque estão do lado de fora, porque não foram com a maré. Optaram por seguir outro caminho, e agora são roçadas pelo ventre cálido do vento; as outras, essas ficam imóveis na sua invejosa altivez.

Há umas noites atrás, já semi-embriagado pelo calor, pela primavera, pelo álcool, olhava fixamente para uma fotografia exposta na parede de um bar. Olhava para a Manuela Azevedo. Mas ela estava de lado, não reparou bem que eu estava a olhar para ela. Estava sentada numa cadeira branca, com os cotovelos apoiados numa mesa à sua frente. E não olhava para mim; comecei a desligar-me das conversas em redor, queria mesmo que ela reparasse que estava olhar para ela, que a estava a observar de uma forma incomodativa para todos; de certeza que não se importou muito, afinal era uma fotografia. Não resisti a dizer "Pst, vamos embora daqui?" "Está bem, mas depois" respondeu-me ela.
Eram três da manhã na Sé e eu fiquei à espera, porque nunca chegou a vir.

Ontem decidi não sair e não sai. As quatro papoilas que vejo da minha janela decidiram que eram desgarradas e foram-no.

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