Wednesday, September 14, 2005

Alice, Miguel, Norah, Régine

O vento entra pelas janelas abertas, um vento quente, suão. Mas é de noite, as luzes da estrada dão algum conforto na solidão. Carros e carros e pessoas dentro dos carros a dormir. Pessoas que contemplam aquilo que a velocidade do carro lhes permite, o vento que faz com que semicerrem os olhos, com que semicerremos os olhos.

Alice.
Ia a guiar e morreu. Morreu num acidente. Gosto de pensar que ia a guiar e a contemplar o céu a azular, a escurecer no crepúsculo que ela julgava ser apenas do dia, não o seu. Porque morreu sem dar conta, com as imagens das montanhas e o sol a esconder-se, o céu azul e vermelho, as suas roupas rasgadas e ensanguentadas, vermelhas e azuis. Os olhos abertos, sem vida, a contemplar a morte e as montanhas e o céu. Morreu com um sorriso. E uma folha mais caída da árvore.

Miguel.
Ia a guiar e viu a morte. Ia olhava para a beata acesa do cigarro, distraía-se com a música que pulava violenta do auto rádio. Quando saiu do carro vomitou, quando saiu do carro chorou sozinho por não ter morrido, por se ter entregue à morte e ter sobrevivido. Sentou-se na berma da estrada a olhar o carro e mais do que nunca sentiu-se sozinho.
Quando tentava viver, agarrar-se à vida sem saber como, tentaram matá-lo. Ia a guiar e baterem-lhe de lado. Não lhe acertaram, acertaram do outro lado. Não morreu.

Norah.
Dormia na paz do banco de trás enquanto acontecia o crepúsculo do dia. As janelas iam baixas, o vento sussurrava-lhe a face, aliciando-a ao sono. Os olhos iam-se fechando com o cansaço e com o vento forte, o vento cálido era tão saboroso. O carro deslizava quase sem barulho, o vento cantava aos seus ouvidos uma canção de embale muito doce, fechou os olhos e adormeceu. Não deu conta de ter morrido e quando a encontraram tinha uma expressão de doce sono, de nunca ter dado conta de que tinha morrido. Era filha da Alice.

Régine.
Canta a morte da Alice e da Norah. Canta-a com a dor pujante de quem não morre, de quem fica para trás a apanhar os restos daqueles que já partiram. Conta as folhas que caem da árvore tão depressa e não deviam, é Primavera, não Outono. Sente dentro de si a morte dilacerar as vísceras, sente-se morrer mais do que aqueles que teve que ver descer para debaixo da terra. Canta com raiva e amor. E muita tristeza.


Escrito a partir de «In The Backseat», Arcade Fire, “Funeral” (2004)

3 Comments:

Blogger Joana said...

viajei neste teu texto ao ritmo da velocidade pessoal que lhe imprimiste e ao som da música de arcade fire...e gostei imenso do ambiente em que entrei. Crias imagens com a meticulosidade parcimoniosa de uma lente que capta movimentos e narrativas. Muito bom.

:)

1:55 AM  
Blogger Sara MM said...

Booooooooooolaaaaaaaaassss.....
Credo! E o pior é que é mesmo assim :o(

Mas para falar de coisas mais pink:
ontem estava mesmo vente quente de sudão...tomei um loooongo banho de mar, enquanto o sol se punha :oD maravilha... e é assim que aproveito enquanto nao sou apanhada em nenhuma dessas "viagens"!

BJs

4:15 PM  
Anonymous Anonymous said...

uma vez tive um sonho, nunca gostei mt de motas nem dos "cenários" que normalmente rodeiam a cena motard e o amor aos motores, mas não sei pk naquele dia sonhei que estava a percorrer o asfalto voando, a sensação era mt boa, o vento a bater na cara parte dos cabelos que esvoaçavam, e sobretudo ........a velocidade, despistei-me, fiz um pião e a partir daí senti que morri, mas não fiquei triste antes pelo contrário vi-me no chão, mas o meu "corpo" continuava inebriado por uma sensação única e inexplicável....quase pecaminosamente boa, senti-me por segundos culpada, estava morta e gostei de morrer....
se calhar morremos muitas vezes, se calhar é bom se calhar chama-se mudança....e muitas pessoas à nossa volta morrem também se calhar mudam.......para melhor

2:49 PM  

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