Monday, September 19, 2005

«Keep Strong»

As lágrimas que caem sobre o teclado não existem: são as mesmas que caem sobre o ecrã do computador sob a forma de letras.
(Lembro-me do tempo em que me autodestruía de forma a conseguir ser criativo e vejo-me agora incapaz de raciocinar, de dar um seguimento aos pensamentos porque me sinto vazio.)
Arrancaram de mim uma importante parte. Arrancaram pelas vísceras, arrancaram com todas as forças. Como conseguir ser criativo se me sinto tão vazio? Sai-me tudo demasiado pessoal, demasiado íntimo para ser partilhado. Não há metáforas nem hipérboles nem hipérbatos que consigam transformar esta dor, que lhe consigam dar uma toada mais lírica. Dói que parece que vamos explodir, que não vamos aguentar mais, que nem sequer cabemos em nós, que desesperamos. Não dói do amor frustrado, dói do amor conseguido.

A despedida foi hoje, mas a partida é amanhã. Cedo.
Talvez seja melhor assim, talvez não seja forte o suficiente para aguentar a violência de uma despedida deste tamanho. É a primeira vez que vivo uma perda como esta: por todos os verbos acabados em “ar” que me ensinaram.
Tenho-me debatido no dilema de ir ou não ir ao aeroporto, de esquecer que à volta existem mais despedidas e que existem pessoas e que existe uma cidade que rodeia aquele momento e deixar-me esvair em lágrimas. Mas sucumbi à cobardia dos que não têm força para aguentar a violência existencial. Talvez seja melhor assim. Talvez não. Talvez.
Conversámos e achámos que era melhor assim. Evocámos todas as razões racionais e sentimentais para que fosse melhor a minha não ida ao aeroporto. Mas porque é que me sinto tão mal? Sei que no aeroporto desejaria mil vezes que aquilo acabasse rápido, não fui talhado para despedidas longas e dolorosas. Violentas, dilacerantes. A conversa terminou, achámos que era mesmo demasiada violência, para qualquer um de nós, para os dois.

Passaram-se as últimas horas em amena conversa, em riso tranquilo e sem pressas. A disposição era calma, como se o tempo do mundo estivesse ao nosso dispor, não houve pressas nem atropelos, foi uma tarde que foi passando. Os ponteiros ignóbeis, ignorados. O tempo foi nosso, nem demasiado rápido, nem demasiado lento, na proporção exacta.
De vez em quando um clarão negro de tristeza surgia nos olhos, ou de um ou de outro; era rapidamente apagado com um beijo ou com um carinho. Houve um momento em que não abri a boca, em que disse tudo. Ela respondeu «Eu ouvi o que disseste». Sorri, há coisas que não necessitam ser ditas.

A tarde alongou-se até chegar com os braços à noite, agarrou-a e puxou-a a si. Abraçaram-se, tarde e noite, com força, até a madrugada vir para as soltar. Ao passar pelo parque, a caminho do carro, é que senti realmente que estava minutos de me perder, de perder parte de mim. Abraçados o caminho todo, estava frio, o vento do Outono tinha chegado dois dias antes, já ameaçava Lisboa, já ameaçava as folhas das árvores.
Entrámos no carro, andámos alguns metros até à porta do meu prédio. Dois suspiros, longos, langorosos e doridos ecoaram pelo carro.
Num abraço de desespero incontido, senti a boca encostar-se ao meu ouvido, num movimento quase imperceptível, num sussurro quase inaudível. Eu disse «Eu ouvi o que disseste». Respondeu-me com um sorriso.

Saí e começou a manobrar o carro. Estava sinal vermelho. Fiquei a olhar para ela. Abriu o vidro e aproximei-me. Agarrou a minha mão com força, beijou-me a palma e disse-me «Keep strong».
Ficou verde e arrancou, no meio dos outros carros, no meio das luzes da cidade.
E as lágrimas negras, uma a uma sobre o teclado, uma a uma no ecrã.

2 Comments:

Blogger Mikado said...

Cada despedida desfragmenta-nos a alma, ficamos quase tão pequenos como a poeira que nos circunda e como é que se desprende de nós a solidão que fica quando o nosso amor parte.
Cry just a bit but keep on going, strong ou not

1:08 PM  
Blogger Joana said...

Já apaguei 4 comentários diferentes. Parece que nenhum fala por mim como gostaria. Por isso deixo-te um beijinho doce e um abraço bem apertado, se me permitires. é um texto lindo, e apesar de saber que não são elogios à escrita que te animam neste momento, é uma dedicatória linda que fazes ao tempo em que não havia despedidas entre vocês.
Continua a escrever, seja o que for, independentemente de como sair...estamos a ler-te
Força nas canetas! :)

10:23 AM  

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