Sunday, September 18, 2005

Pacto de Ternura

Voltei ao parque, descalço. Com vontade de receber sol e ver a relva, os olhos espalhados pela imensidão de verde.
Fiquei com o livro fechado sobre o regaço e o leitor de música na mochila, a inspirar a felicidade das pessoas. Havia a avó super protectora a dizer aos netos que não podiam sair do jardim, os casais que namoravam, as pessoas que estavam só por estar, os que liam e os que tentavam ler, os que jogavam futebol, os que passavam, por fazer o parque parte do seu caminho.
O casal com a criança de um ano que começava a conseguir pôr as pernas, uma à frente da outra, nos primeiros arremedos de passos. E caía na relva e voltava levantar-se e ria-se e voltava a tentar pôr os pés um à frente do outro. Os pais deleitavam-se com a menina que ria e levantava o vestido e se levantava do chão; disputava o casal o amor da filha, que sem saber, já era objecto de discórdia. Com visível amor, o pais queriam que a filha gostasse mais de um do que de outro; faziam esse ritual de auto-segurança sem darem bem conta do que estavam a fazer. E pensar que havia tanto amor. Porque a mãe luta pela criança com as mamadas, com a relação umbilical. O pai recupera agora o tempo perdido, disputa a filha com cócegas e mimos, com histórias de adormecer e um biberão de leite morno. Como a disputará com uma nota de vinte euros dada à socapa nas primeiras saídas nocturnas.
Mas o casal é feliz na doce disputa do amor. O amor entre eles já não interessa, interessa sim o amor da filha, porque esse existirá enquanto a vida existir.

Do parque não guardo só as memórias da tarde, as imagens que recolhi das pessoas, os movimentos e os gestos. Guardei também todos os outros parques em que estive, em que partilhei e dos quais agora me despeço. Não que agora tenha deixado de ir para os parques, agora despeço-me deles porque os encaro numa perspectiva diferente, muito diferente. Não sinto a mesma vontade de ir partilhar segredos e beijos: porque agora vou sozinho. E não é igual, não é mesmo nada igual.
Mas a despedida não implica ausência, vou continuar a ler nos parques, a observar as pessoas.
Porque se continua a partilhar a mesma ternura, o mesmo olhar ansioso de outro amasso, o mesmo segredo dito em voz muito baixa, quase imperceptível, o sussurro que se transformou em beijo. À distância de muitos quilómetros. À proximidade de um bater de coração.

3 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Será que alguma vez faremos parte desta fauna que replanta os parques, dessa disputa inglória de afectos, de casais que trocam beijos ardentes ou ficaremos eternamente como observadores e leitores solitários de livros igualmente solitários?

11:18 PM  
Anonymous Anonymous said...

um segredo significa que não se pode falar nele a outros...mas por vezes é tão grande que é impossível contê-lo dentro de nós...para os budistas procura-se uma fisura entre as paredes de um templo e sussurasse o segredo para dentro da parede tapando para não sair dali, com terra...eu sussurei-o para dentro de uma orelha e tapei-o com um beijo

12:50 AM  
Blogger Joana said...

Dou comigo a fazer o mesmo...em jardins, na rua, às vezes até na sala onde estamos entre amigos e somos tantos e com movimentos e vidas tão diferentes...até ali onde o espaço é um só. Acho que é a inevitabilidade de quem tem os olhos permeáveis ao romance natural da vida e o observa com a paixão e a serenidade de encaixar a beleza do mundo no discurso interno...

10:10 AM  

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