Pacto de Ternura
Voltei ao parque, descalço. Com vontade de receber sol e ver a relva, os olhos espalhados pela imensidão de verde.
Fiquei com o livro fechado sobre o regaço e o leitor de música na mochila, a inspirar a felicidade das pessoas. Havia a avó super protectora a dizer aos netos que não podiam sair do jardim, os casais que namoravam, as pessoas que estavam só por estar, os que liam e os que tentavam ler, os que jogavam futebol, os que passavam, por fazer o parque parte do seu caminho.
O casal com a criança de um ano que começava a conseguir pôr as pernas, uma à frente da outra, nos primeiros arremedos de passos. E caía na relva e voltava levantar-se e ria-se e voltava a tentar pôr os pés um à frente do outro. Os pais deleitavam-se com a menina que ria e levantava o vestido e se levantava do chão; disputava o casal o amor da filha, que sem saber, já era objecto de discórdia. Com visível amor, o pais queriam que a filha gostasse mais de um do que de outro; faziam esse ritual de auto-segurança sem darem bem conta do que estavam a fazer. E pensar que havia tanto amor. Porque a mãe luta pela criança com as mamadas, com a relação umbilical. O pai recupera agora o tempo perdido, disputa a filha com cócegas e mimos, com histórias de adormecer e um biberão de leite morno. Como a disputará com uma nota de vinte euros dada à socapa nas primeiras saídas nocturnas.
Mas o casal é feliz na doce disputa do amor. O amor entre eles já não interessa, interessa sim o amor da filha, porque esse existirá enquanto a vida existir.
Do parque não guardo só as memórias da tarde, as imagens que recolhi das pessoas, os movimentos e os gestos. Guardei também todos os outros parques em que estive, em que partilhei e dos quais agora me despeço. Não que agora tenha deixado de ir para os parques, agora despeço-me deles porque os encaro numa perspectiva diferente, muito diferente. Não sinto a mesma vontade de ir partilhar segredos e beijos: porque agora vou sozinho. E não é igual, não é mesmo nada igual.
Mas a despedida não implica ausência, vou continuar a ler nos parques, a observar as pessoas.
Porque se continua a partilhar a mesma ternura, o mesmo olhar ansioso de outro amasso, o mesmo segredo dito em voz muito baixa, quase imperceptível, o sussurro que se transformou em beijo. À distância de muitos quilómetros. À proximidade de um bater de coração.
3 Comments:
Será que alguma vez faremos parte desta fauna que replanta os parques, dessa disputa inglória de afectos, de casais que trocam beijos ardentes ou ficaremos eternamente como observadores e leitores solitários de livros igualmente solitários?
um segredo significa que não se pode falar nele a outros...mas por vezes é tão grande que é impossível contê-lo dentro de nós...para os budistas procura-se uma fisura entre as paredes de um templo e sussurasse o segredo para dentro da parede tapando para não sair dali, com terra...eu sussurei-o para dentro de uma orelha e tapei-o com um beijo
Dou comigo a fazer o mesmo...em jardins, na rua, às vezes até na sala onde estamos entre amigos e somos tantos e com movimentos e vidas tão diferentes...até ali onde o espaço é um só. Acho que é a inevitabilidade de quem tem os olhos permeáveis ao romance natural da vida e o observa com a paixão e a serenidade de encaixar a beleza do mundo no discurso interno...
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