Thursday, October 20, 2005

Indigente

Na minha última refeição antes de regressar a casa, senti bem perto de mim, à distância de uma gemido, de um suspiro, a dor dos indigentes. Na cama em frente à minha, dormia um homem cujas pernas estavam assoladas por uma devastador e dolorosa doença; cheirava a carne podre, as pernas, ambas, dos joelhos para baixo eram uma única chaga. Um homem, conhecido da zona, que em tempos se elevava nos seus cento e noventa centímetros, um autêntico terror sempre que tinha que comprar sapatos; isto porque já tem à volta de sessenta anos.

Partilhávamos a mesa da enfermaria, ele na cadeira de rodas, eu ajeitando-me o melhor que podia; choramingava com dores, “Se fosse no quinto ou sexto piso, abria uma janela e atirava-me”, estávamos no terceiro
Nunca fui muito adepto de suicídios, (bem, há dias uma amiga minha recordou-me a imbecil idade adolescente em que dizia que me queria suicidar aos quarenta, mas na altura ouvia muito Joy Division, por isso é desculpável) e repliquei ao senhor «Tenha calma, vai ver que tudo se resolve. Não é preciso estar aí com ideias parvas. Depois de almoço experimente a descansar.»
“O único descanso que me resta é a cova.” Descanso era coisa que o senhor não tinha: acordava a meio da noite, acendia a luz cimeira à sua cama, número três numa enfermaria de seis, e sentava-se na borda da cama, com as pernas pendentes para o chão, sem nunca lhe tocar. Dormitava, dobrado sobre ele próprio, num precário equilíbrio entre a cama e o chão. Uma noite, terminou no chão, sucumbindo ao cansaço, depois de inúmeras noites em semi-vigília.
Na tarde em que comigo partilhou as suas suicidas ideias, sentia as pernas mais doloridas, que o queimavam por dentro, os ossos, a alma, a carne podre.
Horas depois tive alta e regressei a casa.

Faço-o em tom de piada fácil, brejeira, conto as histórias do senhor. Mas no fundo, tudo isto é apenas um subterfúgio para a imensa pena que aquele espectro acinzentado me inspirou. Não sei, despertou-me a atenção mais do que qualquer outro paciente, até mesmo o senhor com cara de bolacha, sempre sorridente, que estava na cama ao lado da minha. Era velho e sujo, dizia mal das enfermeiras mal viravam as costas. Não era simpático, dificultava o próprio tratamento. E estava sozinho no mundo.
Era apenas visitado por outro homem, que se ocupava dele como um familiar, que não tinha mais que fazer e que se ocupava dele. Dava-lhe o jantar à boca como um pai dá a um filho; ainda que perversa, esta matemática, era saudável para os dois.
Nada o espera fora das portas do hospital, apenas o lar da Santa Casa, podre poço de almas moribundas, vala comum de cadáveres vivos. Contraria o tratamento, porque depois do hospital só lhe resta esperar pela morte.

Um dia ganha coragem, sobe ao sexto andar, no elevador, e abre uma janela.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home