Friday, October 14, 2005

O cemitério e homem »duas raquíticas fábulas lisboetas«

Sou um utente conformado; sigo nas carreiras dos autocarros com um ar triste e embrutecido, desejando a paz da minha casa, a paz do valium e da vodka. Mas antes dessa pacífica hora nocturna chegar, sou um utente que paga o passe e que se levanta para deixar os idosos e os inválidos sentarem-se. E tenho ar de funcionário público.
Corria a carreira do quarenta e dois a meio, ali pelas banda do Alto de São João, quando vi aquilo que vos pretendo contar. Olhei para dentro do cemitério e vi o coveiro, de profundas olheiras carregadas, a lavar a sua motorizada; preta, naturalmente. E fez-se luz sobre os barulhos que me mantêm acordado à noite.
Quando fecham as portas do cemitério, quando os lobisomens uivam da mata de Monsanto – que com certeza todos já ouvimos falar das prostitutas comidas – quando os justos repousam nos seus lares, o coveiro sai. Vestido de cabedal preto, em cima da sua motorizada. A sacar cavalinhos entre as campas e mausoléus, entre criptas e carreiros de flores, lá vai ele, acordando mortos e vivos, com o seu barulho infernal, com os seus berros satânicos.
E durante o dia, com as profundas olheiras carregadas, lava a sua Suzuki Address com a mangueira com que rega as flores pisadas na noite anterior. Com os olhos raiados de vermelho e o sorriso de quem pensa na próxima noite, nos mortos acordados e nos vivos sem conseguir dormir.

Nos tempos livres posso ser quem sou. Tiro da cara expressão cinzenta de funcionário público, esqueço que sou utente e passageiro da carreira do quarenta e dois que passa pelo Alto de São João.
Dediquei uma tarde aos trabalhos caseiros; à montagem de alguns móveis para a minha casa. Eram pesados, mas nada que um homem não pudesse, até me fazia bem aos bíceps. Depressa me enchi de calor e achei que era melhor estar à vontade. Tirei a camisola que vestia deixando os pelos do peito ao vento, coloquei um lápis atrás da orelha. Faltava mesmo a cerveja. Senti-me um verdadeiro homem, o suor a escorrer pela minha fronte, os pelos do peito a ondularem ao sabor da brisa que percorria o quarto pelas janelas abertas que faziam corrente de ar. Quando terminei, senti-me homem, cocei-me e achei que faltava mesmo a cerveja. Estava tudo bem montado, metódico e matemático. Sou um homem, um homem a valer.
Sou um homem de cama porque a aragem fez com que me constipasse; ainda não morri porque não calhou.

2 Comments:

Blogger Joana said...

Macho que é macho, aguenta e não chora!
Andaste armado em Handy-Man tens de levar com o microbio da gripe que construiu a sua casinha no teu narizinho!
As melhoras!
:)
bjs

4:42 PM  
Blogger Joana said...

Adorei o lado mordaz, até negro deste texto. Não vejo nada disso quando passo no 42 pelo alto de s. joão, mas sem dúvida que a visão daquele muro que parece nunca mais ter fim não me inspira paz alguma. Sinto-me agoniada quando vejo da janela do autocarro aqueles grandes portões. Acho que é o meu desejo de viver que não suporta a ideia.
Tenho pena que estejas doente, estar de 'molho' é uma seca. As tuas rápidas melhoras.
Beijinho grande :)

12:13 AM  

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