Monday, October 24, 2005

Castanhas e Raízes

Choveu a chuva que tinha que chover: uma chuva pequena e contínua, uma chuva que não magoa o campo, uma chuva que pousa suavemente nas superfícies. Choveu durante dois dias seguidos. O ar encheu-se de cheiro a Outono e comecei a sentir falta das castanhas assadas, do fumo que se espalha. Desci ao Rossio para comprar uma dúzia. (Como agora poderia falar de tantas cidades, de tantas cidades têm um Rossio e um vendedor de castanhas assadas no Rossio.) A minha cidade tem um Rossio e um vendedor de castanhas assadas no Rossio.

Não sou, de forma alguma, personagem conhecido na minha terra natal; sou mais um anónimo, que tanto podia ser um estudante do Instituto Politécnico como um filho da terra.
Gosto que os regressos a um sítio que me habituei a chamar casa sejam anónimos, que o contacto seja muito limitado, apenas com a família e aqueles amigos mais chegados. Porque deste sítio que me habituei a chamar casa, arranquei as raízes há muito; mesmo no tempo em que mais andava perdido, não consegui descortinar um norte e um ponto de origem. As raízes que me prendem à terra, que me fazem regressar são afectuosas, emocionais. Têm a ver com pessoas, não com um sentimento de pertença.

Tinha já na mão o meu embrulho de páginas amarelas com doze castanhas e mais algumas porque «o menino é muito simpático e eu conheci o seu avôzinho». Não é assim que se passa, ninguém sabe de quem eu sou neto, levo as doze castanhas contadas e não me importo muito com isso. Sei que dessas todas vou comer apenas sete ou oito, que as outras estão podres. Retoma a chuva a sua dolente queda, o papel que embrulha as castanhas passa tinta para as minhas mãos. Resguardo-me na porta grande do Palácio da Póvoa e fico a olhar as pessoas, o quiosque, os carros.

Sempre achei que ser alentejano tinha muito a ver com o facto de se ser triste. A solidão e calor do Alentejo, as casas no meio de nada impelem a sentimentos de ausência e tristeza, a uma religiosidade há muito esquecida. Continuo a procurar a minhas raízes e continuo sem as conseguir encontrar. Suponho que todos necessitamos que um lugar onde podemos voltar, ao qual nos sentimos em casa. E se nos sentirmos bem no mundo, sem lugar definido?
Sinto afinidades com esta terra triste, com esta terra queimada e esquecida. Sinto que pertenço tanto a este povo sofrido, como a outro mais audaz e aventureiro; sinto esta religiosidade pacífica das horas mortas do fim da tarde, a espantar a solidão; sinto o hedonismo citadino. Sinto que as minhas raízes não passam de um nome que já esqueci.

A chuva parou. As castanhas ficaram frias e molhadas. Começo o meu regresso a casa, à casa dos meus pais. Por mim passam alguns estudantes do liceu que experimentam os primeiros cigarros e as primeiras línguas. Rio-me para dentro ao pensar que também já tinha fumado às escondidas; depois fumei às claras e por fim deixei de fumar.
Descobri que o amor não se descobre na adolescência, que nessa idade é um conceito demasiado vago para se levar a sério. Mas descobri que quando se descobre, percebemos, sentimos os coração acelerar sem porquê, sentimos que não encontrámos alguém igual a nós, mas sim alguém que nos completa. Descobrimos que o valor do amor está na partilha, no carinho. Que o valor está em ser a dois, de igual modo, de igual forma, de igual tamanho, enorme.

4 Comments:

Blogger Alberto Oliveira said...

É verdade que nasci num determinado lugar. Que nesse lugar estrão as minhas raizes e que eu não enjeito esse lugar; por acaso?! até gosto dele...embora já tivesse gostado mais.
E embora nada aconteça por acaso (tema enorme para uma discussão gigantesca à volta de uma garrafa de vodka) a verdade é que me sinto naturalmente em qualquer lado deste planeta. Dos "lados" que conheço, pois claro.
E que por esta altura do ano, vendam castanhas assadas na rua...

2:43 PM  
Blogger Joana said...

je suis enchanté, cherie!
deslumbrada com as tuas palavras...

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10:59 AM  
Blogger Mikado said...

Desgastamos solas de sapatos e muito tempo a encontrar de novo um ninho, que nos abrigue e proteja, pode ser um lugar, pode ser um abraço, pode ser o consolo da escrita, pode ser a ombreira de uma porta que nos abriga passageiramente de uma chuva de outono.

10:48 AM  
Blogger I said...

A minha terra são as pessoas que amo.
Ser alentejano é ser triste...sim, concordo, é.
Vivi no Alentejo muitos anos, na irmã "feia " de Évora: Beja. O Alentejo é lindo , lindo, mas muito triste.

1:49 AM  

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