O impermeável verde
Saí de casa para chuva com o meu impermeável verde. Deixei-me ficar parado no largo em frente à minha casa. Sentia as pequenas gotas de chuva a fazer barulho sobre a capa que me cobria. Deixei-me estar com um sorriso enorme. Gosto da sensação de estar à chuva sem me molhar, a ouvir as gotas que caem, numa cadência aleatória. Puxei, com força, para dentro dos pulmões, o ar fresco da rua, o ar húmido e chuvado.
Gosto deste largo, sempre gostei. Acho que faço parte daquela última geração a que ainda foi permitido brincar nos largos, jogar futebol, jogar às escondidas nas noites de Verão, andar de bicicleta, jogar ao desequilibra ou aos dez pés. No meio de tudo isto, dou por mim, com a chuva a fazer barulho em cima do meu impermeável verde, no meio daqueles jogos todos; provavelmente acho que tinha dissuadido aquele grande grupo de colocar os limões dentro do marco do correio; mal sabíamos nós qual o castigo que teríamos, que seria um daqueles castigos que iriam servir de exemplo de como os pais podiam ser maus. Proibidos de ir às festas da cidade nos quatro dias que elas duravam. Isto tudo mo mesmo largo.
Olho à volta. Como é que vieram aqui parar tantos carros? Sei que a escola primária é já ali, mas ainda não são horas da saída. Lembro-me de ver o largo sem carros, lembro-me achar que estava excepcionalmente vazio. Nesse dia fui buscar a minha bola de futebol e andei a atirar contra todos os muros que podia, nesse dia não havia limites, não havia carros que pudessem estragar a minha brincadeira. Mas também não havia ninguém para brincar. E nos dias em que éramos muitos, nos dias em que havia duas completas equipas de futebol, o largo inundava-se de carros. Acho que nessa altura já provávamos as amarguras da lei de Murphy.
O vento puxou para trás o capuz do meu impermeável verde. A partir de uma determinada altura deixei de usar verde, especialmente em camisolas, camisas e casacos. Para uma ocasião especial vesti umas calças castanhas escuras, uma camisa e uma camisola verde. Quando cheguei ao local disseram-me: «Então, vens vestido de árvore?» Bem, desde essa altura nunca mais fui muito conivente com o verde, com medo que numa distracção me vestisse de novo de árvore.
Mas o vento que me puxou o capuz para trás continua a soprar com força e deixo que me sopre os cabelos, me passe pelas orelhas. Consigo senti-lo no couro cabeludo. Não faço força para puxar o capuz para trás, deixo que o vento me feche os olhos e a chuva que ficou miudinha me encha os óculos de pequenas pingas.
Volto a puxar o capuz para cima, aperto um pouco mais o impermeável verde, para me proteger da chuva, pouco me importando se tenho umas calças castanhas ou não. Olho em volta e vejo-me a mim com várias idades, as minhas irmãs, os limões que primeiro roubámos e que depois deitámos no marco do correio da esquina.
A chuva na cara desperta-me. Passaram apenas alguns segundos desde que saí do prédio e fiquei a olhar para o largo e para os carros. Agora tenho que ir fazer aquilo que me levou a sair de casa neste dia de chuva.
9 Comments:
É verdade. Como é que em tão pouco tempo(?!) as ruas e os largos se encheram de carros e não permitiram mais que os putos brincassem "cá fora"?
Claro que não se volta ao passado de verde vestido; que a esperança é para o futuro e...para os optimistas.
Na minha memória de criança também há um largo à chuva, e um cheiro forte a gasolina que diluido no do ambiente produz um dos meus aromas-memória favoritos da infância. Ainda hoje quando saio daquele prédio em dias chuvosos vejo-me pequenina e sinto-me um pouco como tu, debaixo do impermeável verde. O largo também mudou, eu cresci. Agora ao sair já não vou ao colo do meu pai, vou pelos meus pés..."fazer aquilo que me levou a sair de casa".
P.S: espero que muito em breve deixes de precisar de pensos. Rápidas melhoras :) Beijinho grande
Estás enganado se pensas que a boa conduta compensa. Pôr limões dentro do marco do correio é tão grave como não os pôr. Foi isso que eu aprendi nessas festas da cidade. Conclusão: vivam as cartas com sabor a limão!!
Como são agradáveis e nostálgicos os primeiros dias de chuva...
a velocidade que trazia no meu andamento fez uma paragem brusca e de seguida a marcha atrás... fui longe, à minha primeira infância: à casa, ao cheiro dos dias de chuva, o barulho da água a correr no algeroz e... as vozes - muitas meninas à mesma beira, todas a chorarem de igual maneira - lengalenga de celebração do recolhimento! as brincadeiras deslocavam-se dos espaços abertos para o interior; nas escadas dos prédios... era o tempo de batizar as bonecas, brincar aos médicos, aos jogos de palavras, à construção e ensaio dos teatrinhos...
os carros continuam a passar longe :)
gostei muito do "vestido à árvore"!
beijos
p.s.
espero é que não tenhas ficado como a outra que disse que sentiu como uma alface!... ok era para ter piada... mas já vi que não consegui... tsk, tsk, tsk.
Pá proxima corre melhor!
quando comecei a ler, tinha o costume de ir para uma árvore, era pequena, quase raquítica, tinha nascido entre as pedras que separavam o poço e o riacho, mas possuía um longo braço semelhante a um balouço no qual eu me podia sentar e sombra suficiente para me sentir confortável...num dia menos calmo e de inquietação, daqueles que por uma razão bastante estúpida pensamos que o "nosso" mundo vai acabar, deitei-me naquele tronco e desejei fazer parte dela "se aqui ficar muito muito tempo e se me concentrar..." o dia, ou melhor o anoitecer acabou com mais um ralhete...ele há dias em que nada corre bem..
Que continue a chover assim para tu continuares a escrever assim!
É curioso... "vestido de árvore", num outono, como outro qualquer.
Raramente visto verde e há muito tempo que penso "vou comprar roupa verde".
Por alguma razão, sinto que vestir de verde faz bem ao coração :o)
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