Sunday, October 30, 2005

Sótão virado casa

Acho que com o Outono me deixo sempre tomar por uma espécie de sentimento de nostalgia; não sei, encontro um enorme prazer romântico nas folhas que caem, no barulho da chuva. Mas não é só de Outonos molhados que gosto, gosto daqueles Outonos secos e ventosos, em que as folhas de plátano se enchem as ruas, deixando uma pequena camada, a qual nós pisamos. Deixamos de andar em cima da calçada, dos passeios, mas sim em cima de folhas de plátanos, quais pétalas de rosa, se realeza fôssemos. Mas não somos.
Hoje caminhei na minha rua, numa rua em que as árvores de abrunhos se enchem de flores brancas com a Primavera, nos sacos transparentes que nós enchíamos de abrunhos que serviam de lanche nos intervalos da escola primária. Suponho que o prazer romântico que encontro em tudo isto, é apenas o mesmo prazer que encontrava numa infância despreocupada.

Olho para a parede em frente ao meu computador e vejo uma gota de humidade que desce de uma mancha escura do tecto. A gota de humidade desce, vagarosamente, como se nada mais tivesse que fazer, a não ser descer uma parede com pouco mais de dois metros. Desce timidamente a parede, como se estivesse a tentar provar a segurança de cada reentrância, como uma montanha que já se escalou e se está a descer.

Andava a magicar o porquê destas tantas reminiscências infantis; a casa onde vivi, durante os primeiros dezanove anos da minha vida vai ser vendida. Sempre achei um pouco ridículos os filmes americanos que falavam de quando as pessoas tinham que se separar de um carro ou de uma casa: para mim não faz sentido que uma pessoa se apegue tanto a um bem material, quanto mais a um imóvel. Achava que aqueles dilemas existências eram algo que me ultrapassava, honestamente, não conseguia compreender.
Acontece que essa casa não é uma casa qualquer: é um sótão. Vivi durante dezanove anos num sótão adaptado a casa. Tinha o telhado a descer e em algumas partes da casa tínhamos que andar de cócoras.
Não era, de longe, a casa perfeita. Mas a verdade é que nela senti sempre algumas raízes, algum sítio para onde sabia que era bom voltar, nem que fosse para os tectos esconsos onde passava o tempo a dar cabeçadas. A casa está vazia e de quando em vez encontro uma desculpa válida para ir àquele sótão virado em segundo esquerdo, para cheirar a casa, para cheirar o chão de cortiça envernizada. Tão fresco no verão e acolhedor no Inverno, contrariando o resto de casa. Lembro-me dos Verões quentes, de dormirmos todos no terraço, as mangueiradas de água fria, fria que o meu pai nos dava, a mim e às minhas irmãs no pico do Verão.

Assim como a infância terminou anos antes, anos mais tarde a casa também terminou. Os quartos pequenos, o tecto esconso, as cabeçadas, o chão e o terraço, a mangueira de água fria, a infância.
[Sorriso nostálgico, não triste.]

6 Comments:

Blogger Alberto Oliveira said...

A primeira casa onde vivemos (melhor; onde nos aprendemos a conhecer) é sem dúvida marcante para o resto da vida. E de quando em vez, dá-se lá um salto como tu fizeste no texto.

A casa onde nasci já não existe há uns anos. É agora um imóvel com cinco andares (antes só tinha um). Mas regresso lá quando tenho tempo. O espaço físico mantém-se; está lá de tal modo que eu revejo-me em criança, quando lá vou.

8:22 PM  
Blogger I said...

Tudo termina: a infância , a casa...mas continuamos e transportamos em nós :a infância, a casa.Até terminarmos.

10:15 PM  
Blogger I said...

e conheces o poema sobre Portugal de Jorge de Sena? escreveu-o no exilio, no Brasil ou nos EUA.Merece a pena ler. É um poema que me choca tanto que nem tive ainda coragem de o colocar no ASAS Se não encontrares, eu tenho.
Não ha optimismo possivel.Leste um artigo que saiu em Setembro, sobre Portugal, no El Pais? Duro...mas infelizmente verdadeiro, doa a quem doer.

12:26 AM  
Blogger  said...

Todos nos apegamos a bens materiais, principalmente as casas onde vivemos, onde crescemos, assim se explica uma certa relação afectiva que desenvolvemos com os mesmos bens.
Não percebias isso porque talvez nunca tivesses pensado nisso não?

11:24 AM  
Blogger segurademim said...

... antes que caia, filma! assim como as fotos de criança que os pais nos fizeram e estão nos albuns de familia... para lá voltarmos sempre que quisermos!!! e se fôr o caso ... chorar! as perdas vão sendo ultrapassadas, mas podem ser revisitadas... é saudável, dizem!!...
Já me implicaste nessa demolição!
Tu escreves muito bem!!! :)

2:33 PM  
Anonymous Anonymous said...

A minha infância, passei-a em 7 casas diferentes. Depois disso já conto mais cinco... Acreditas se te disser que a todas me apeguei? Talvez porque vivo muito de simbologias, encaro o "espaço pessoal" que é uma casa como um reflexo do "eu". O sótão como a cabeça, ou talvez mais como o que lá se guarda; a garagem, a arrecadação ou a entrada como os pés que calçamos, descalçamos, em que nos apoiamos, com que andamos...
Gosto do que escreves!
Marina

12:51 AM  

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