Tuesday, November 01, 2005

Dia de Todos os Santos

(Hoje saí cedo de casa, para ver o céu cinzento que secava a chuva de ontem à noite. Sentia os meus olhos pesados da noite mal dormida; era cedo ainda e os meus olhos abriam-se para ver a escuridão do quarto, para ver a luminosidade que saía do rádio; a luz verde, persistente, insistente na insónia.)

Mas o céu estava cinzento e o vento soprava pouco, o suficiente para me fazer fechar o casaco. Fechei os olhos para que o vento me varresse a cara, para sentir a carícia outonal numa cidade vazia de vida. Quando entrei dentro do carro desliguei o rádio, queria gozar esta cidade que se entregava à sua solidão.
Grupos de crianças passeavam na rua, de sacos de plástico nas mãos. Andam pelas ruas, a bater de porta em porta, a pedir os santinhos. Também corria a cidade com alguns amigos e irmãs, o mesmo grupo que dava gosto às cartas. Mas nessa altura, esquecíamos as brincadeiras do largo, esquecíamos que nos portávamos mal e fazíamos ar de anjinhos, batendo de porta em porta, a pedir os santinhos. E regressávamos a casa com sacos cheios de doces e algumas moedas que serviam para comprar mais doces.

(A cidade está tão vazia de vida adulta. Aqui e ali, abrem a porta alguns rostos por barbear, algumas camisas de noite apanhadas despercebidas pelo vento que lhes bateu à porta sob forma de criança.)

Quando chegados a casa, era fazer o inventário, ver o dinheiro que cada um tinha conseguido juntar. Havia aquelas casas onde sabíamos que éramos esperados, onde sabíamos que a recompensa seria muito boa, a casa dos avós e daquelas senhoras mais velhas que com o passar do tempo também se tornaram avós. E depois havias prendas que eram dadas aos pais: marmelada caseira que depois comíamos em grandes torradas com queijo.

(Olho dois rapazes que falam à janela com um senhor; pelos gestos, eles querem que o senhor lhes dê uns doces ou então que lhes dê dinheiro suficiente para que eles possam ir comprar alguns. Mas antes disso, o senhor - de cara carrancuda - explica-lhes a origem desta tradição. Não querem saber, querem o dinheiro ou os doces. Percebendo que já ninguém quer saber dele, que já ninguém quer ouvir o que tem a dizer, diz aos miúdos que não tem nada e fecha a janela. Mas a janela que fecha, não é só a da sua casa, é também a janela para o mundo, a ponte de ligação com os que poderiam ser seus netos.)

À medida que os anos foram passando, os sacos de plástico que levávamos foram ficando cada vez mais vazios, cada menos portas se nos abriram, cada vez menos víamos a sombra através do óculo das casas que depois nos abriam as portas com um sorriso. E depois o tempo para nós também passou e era mais interessante sair até tarde na noite anterior do que sair cedo no dia seguinte.

(Este vento seco tinge a cidade de uma religiosidade nunca vista, enche a cidade de silêncio; o silêncio respeitoso dos mortos que são visitados nas suas campas, as procissões familiares ao cemitério para colocar umas flores na negligenciada última morada.)

4 Comments:

Blogger segurademim said...

... e são demasiadas as janelas fechadas ao mundo, o mundo responde com indiferença e abandono!! não há conversa possível... os ritmos são diferentes, não existem "pontes"!!!
dia de todos os santos e de todas as guloseimas; mais durante a manhã, em romaria vai-se ao cemitério... a tarde é de shopping! aí a vida fervilha indiferente ao pãopordeus ... :)

3:40 PM  
Blogger Alberto Oliveira said...

...o que foste arranjar com este post. Daqui a pedaço começo a comover-me com as reminiscências dum passado que parece ter sido ontem.
A minha experiência de puto citadino não apanhou esta cena do pão por deus.
Foi mais uma outra que ocorria pelos santos populares; 2dê-me um tostãozinho para o santo antónio!"

7:33 PM  
Blogger I said...

bolas...o teu post fez-me sentir cota!é que qdo eu era miuda não havia dia das bruxas , por cá!

11:07 PM  
Blogger Joana said...

vivência muito saudável, essa que alguns da nossa geração têm tido no contacto com a 'terra' dos avós. Infelizmente não vivi isso, sou lisboeta de 3ª geração, mas ainda acompanhei algumas fases na terra de avós de amigos meus e há uma magia especial nessas infâncias, com toda a certeza. Há um colo familiar mais alargado. Há recordações mais 'enraízadas' da noção de familia e de comunidade. Muito giro isso. Muito giro este texto.

4:22 PM  

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