Sunday, November 06, 2005

Prazo de Validade: 06.11.2005

De Tanto Bater O Meu Coração Parou.

Adeus.
FIM.

Friday, November 04, 2005

Crónicas do Amor

À minha frente, no metropolitano, um casal de cinquenta anos beija-se apaixonadamente, como se tivessem a idade dos filhos e não lhes interessasse o resto do mundo para nada. A mão dela desliza pelas costas a assenta no rabo dele. À minha volta vejo várias pessoas chocadas e incomodadas.

Gosto pensar na gota de suor que repousava no teu mamilo à beira do suicídio. Tinha escorrido não se sabe bem de onde; tinha escorrido da tua testa, do teu pescoço, debaixo dos teus braços. Repousava no teu mamilo antes de dar o salto final, antes de cair. Gosto do sabor salgado do teu suor, das gotas que repousam nos teus mamilos.

Uma rapariga olha o telefona com o desespero adolescente de quem espera um telefonema do namorado. [Neste momento, o namorado está de certeza ocupado com outra rapariga.] Olha para o telefone que está imóvel e silencioso. [Já está à beira do suicídio, quando por acaso outro rapaz a salva. Por acaso esse rapaz é aquele empregado de balcão onde todos os dias bebe café.] Como será fazer amor com aquele rapaz? De certeza que só trabalha para ganhar dinheiro, tem um olhar tão vivo e inteligente, ainda deve estar a estudar. [Fazem amor, são felizes e têm muitos filhos, afinal trabalhava na pastelaria porque precisava de ajudar os pais; agora é um doutor muito respeitado. O ex-namorado que não lhe telefonou olha-a com infinita pena de não lhe ter dado o devido valor.] A casa está tão silenciosa. Será que o mundo parou? Os olhos estão vermelhos, de quem dormitou – então foi isso! – mas o sono não foi pacífico. [O ex-namorado que quase a levou ao suicídio, pede-lhe que volte. Ela diz que não, que vai ficar com o rapaz da pastelaria que agora é doutor.] E se tivesse que fazer essa opção? Gostava da personalidade do namorado no corpo do rapaz da pastelaria. Mas parece que não consegue dissociar um corpo de uma personalidade. Fica a pensar qual dos dois preferia. O rapaz da pastelaria é uma incógnita, sabe lá que histórias tem ele para contar. O namorado já o conhece há três anos, apesar dos defeitos, gosta muito dele. Talvez o rapaz da pastelaria sem o namorado saber. Para experimentar. O telefone toca, languidamente estende-se na cama para o alcançar,
“Sim?”
«Desculpa ter demorado tanto a ligar, estava um trânsito terrível e fiquei sem bateria.»
“Não faz mal, calculei que fosse qualquer coisa assim. Sabes, estava mesmo a pensar em ti…”

As barrigas ficaram coladas com o suor e achávamos que podíamos ficar assim durante muito tempo. Afinal não eram gotas de suor que escorregavam até aos teus mamilos; eram gotas de um choro que quem nunca tinha experimentado tamanha felicidade. E chorámos os dois e fizemos amor mansamente, numa noite em que o céu também chorava por nós.

Entre a estação de Picoas e do Marquês de Pombal, onde há ligação com a linha Azul, o metropolitano apenas durou um beijo e um apalpão para o casal de cinquenta anos que ia à minha frente, que ia à frente de muita gente.

Tuesday, November 01, 2005

Dia de Todos os Santos

(Hoje saí cedo de casa, para ver o céu cinzento que secava a chuva de ontem à noite. Sentia os meus olhos pesados da noite mal dormida; era cedo ainda e os meus olhos abriam-se para ver a escuridão do quarto, para ver a luminosidade que saía do rádio; a luz verde, persistente, insistente na insónia.)

Mas o céu estava cinzento e o vento soprava pouco, o suficiente para me fazer fechar o casaco. Fechei os olhos para que o vento me varresse a cara, para sentir a carícia outonal numa cidade vazia de vida. Quando entrei dentro do carro desliguei o rádio, queria gozar esta cidade que se entregava à sua solidão.
Grupos de crianças passeavam na rua, de sacos de plástico nas mãos. Andam pelas ruas, a bater de porta em porta, a pedir os santinhos. Também corria a cidade com alguns amigos e irmãs, o mesmo grupo que dava gosto às cartas. Mas nessa altura, esquecíamos as brincadeiras do largo, esquecíamos que nos portávamos mal e fazíamos ar de anjinhos, batendo de porta em porta, a pedir os santinhos. E regressávamos a casa com sacos cheios de doces e algumas moedas que serviam para comprar mais doces.

(A cidade está tão vazia de vida adulta. Aqui e ali, abrem a porta alguns rostos por barbear, algumas camisas de noite apanhadas despercebidas pelo vento que lhes bateu à porta sob forma de criança.)

Quando chegados a casa, era fazer o inventário, ver o dinheiro que cada um tinha conseguido juntar. Havia aquelas casas onde sabíamos que éramos esperados, onde sabíamos que a recompensa seria muito boa, a casa dos avós e daquelas senhoras mais velhas que com o passar do tempo também se tornaram avós. E depois havias prendas que eram dadas aos pais: marmelada caseira que depois comíamos em grandes torradas com queijo.

(Olho dois rapazes que falam à janela com um senhor; pelos gestos, eles querem que o senhor lhes dê uns doces ou então que lhes dê dinheiro suficiente para que eles possam ir comprar alguns. Mas antes disso, o senhor - de cara carrancuda - explica-lhes a origem desta tradição. Não querem saber, querem o dinheiro ou os doces. Percebendo que já ninguém quer saber dele, que já ninguém quer ouvir o que tem a dizer, diz aos miúdos que não tem nada e fecha a janela. Mas a janela que fecha, não é só a da sua casa, é também a janela para o mundo, a ponte de ligação com os que poderiam ser seus netos.)

À medida que os anos foram passando, os sacos de plástico que levávamos foram ficando cada vez mais vazios, cada menos portas se nos abriram, cada vez menos víamos a sombra através do óculo das casas que depois nos abriam as portas com um sorriso. E depois o tempo para nós também passou e era mais interessante sair até tarde na noite anterior do que sair cedo no dia seguinte.

(Este vento seco tinge a cidade de uma religiosidade nunca vista, enche a cidade de silêncio; o silêncio respeitoso dos mortos que são visitados nas suas campas, as procissões familiares ao cemitério para colocar umas flores na negligenciada última morada.)

Sunday, October 30, 2005

Sótão virado casa

Acho que com o Outono me deixo sempre tomar por uma espécie de sentimento de nostalgia; não sei, encontro um enorme prazer romântico nas folhas que caem, no barulho da chuva. Mas não é só de Outonos molhados que gosto, gosto daqueles Outonos secos e ventosos, em que as folhas de plátano se enchem as ruas, deixando uma pequena camada, a qual nós pisamos. Deixamos de andar em cima da calçada, dos passeios, mas sim em cima de folhas de plátanos, quais pétalas de rosa, se realeza fôssemos. Mas não somos.
Hoje caminhei na minha rua, numa rua em que as árvores de abrunhos se enchem de flores brancas com a Primavera, nos sacos transparentes que nós enchíamos de abrunhos que serviam de lanche nos intervalos da escola primária. Suponho que o prazer romântico que encontro em tudo isto, é apenas o mesmo prazer que encontrava numa infância despreocupada.

Olho para a parede em frente ao meu computador e vejo uma gota de humidade que desce de uma mancha escura do tecto. A gota de humidade desce, vagarosamente, como se nada mais tivesse que fazer, a não ser descer uma parede com pouco mais de dois metros. Desce timidamente a parede, como se estivesse a tentar provar a segurança de cada reentrância, como uma montanha que já se escalou e se está a descer.

Andava a magicar o porquê destas tantas reminiscências infantis; a casa onde vivi, durante os primeiros dezanove anos da minha vida vai ser vendida. Sempre achei um pouco ridículos os filmes americanos que falavam de quando as pessoas tinham que se separar de um carro ou de uma casa: para mim não faz sentido que uma pessoa se apegue tanto a um bem material, quanto mais a um imóvel. Achava que aqueles dilemas existências eram algo que me ultrapassava, honestamente, não conseguia compreender.
Acontece que essa casa não é uma casa qualquer: é um sótão. Vivi durante dezanove anos num sótão adaptado a casa. Tinha o telhado a descer e em algumas partes da casa tínhamos que andar de cócoras.
Não era, de longe, a casa perfeita. Mas a verdade é que nela senti sempre algumas raízes, algum sítio para onde sabia que era bom voltar, nem que fosse para os tectos esconsos onde passava o tempo a dar cabeçadas. A casa está vazia e de quando em vez encontro uma desculpa válida para ir àquele sótão virado em segundo esquerdo, para cheirar a casa, para cheirar o chão de cortiça envernizada. Tão fresco no verão e acolhedor no Inverno, contrariando o resto de casa. Lembro-me dos Verões quentes, de dormirmos todos no terraço, as mangueiradas de água fria, fria que o meu pai nos dava, a mim e às minhas irmãs no pico do Verão.

Assim como a infância terminou anos antes, anos mais tarde a casa também terminou. Os quartos pequenos, o tecto esconso, as cabeçadas, o chão e o terraço, a mangueira de água fria, a infância.
[Sorriso nostálgico, não triste.]

Thursday, October 27, 2005

O impermeável verde

Saí de casa para chuva com o meu impermeável verde. Deixei-me ficar parado no largo em frente à minha casa. Sentia as pequenas gotas de chuva a fazer barulho sobre a capa que me cobria. Deixei-me estar com um sorriso enorme. Gosto da sensação de estar à chuva sem me molhar, a ouvir as gotas que caem, numa cadência aleatória. Puxei, com força, para dentro dos pulmões, o ar fresco da rua, o ar húmido e chuvado.

Gosto deste largo, sempre gostei. Acho que faço parte daquela última geração a que ainda foi permitido brincar nos largos, jogar futebol, jogar às escondidas nas noites de Verão, andar de bicicleta, jogar ao desequilibra ou aos dez pés. No meio de tudo isto, dou por mim, com a chuva a fazer barulho em cima do meu impermeável verde, no meio daqueles jogos todos; provavelmente acho que tinha dissuadido aquele grande grupo de colocar os limões dentro do marco do correio; mal sabíamos nós qual o castigo que teríamos, que seria um daqueles castigos que iriam servir de exemplo de como os pais podiam ser maus. Proibidos de ir às festas da cidade nos quatro dias que elas duravam. Isto tudo mo mesmo largo.

Olho à volta. Como é que vieram aqui parar tantos carros? Sei que a escola primária é já ali, mas ainda não são horas da saída. Lembro-me de ver o largo sem carros, lembro-me achar que estava excepcionalmente vazio. Nesse dia fui buscar a minha bola de futebol e andei a atirar contra todos os muros que podia, nesse dia não havia limites, não havia carros que pudessem estragar a minha brincadeira. Mas também não havia ninguém para brincar. E nos dias em que éramos muitos, nos dias em que havia duas completas equipas de futebol, o largo inundava-se de carros. Acho que nessa altura já provávamos as amarguras da lei de Murphy.

O vento puxou para trás o capuz do meu impermeável verde. A partir de uma determinada altura deixei de usar verde, especialmente em camisolas, camisas e casacos. Para uma ocasião especial vesti umas calças castanhas escuras, uma camisa e uma camisola verde. Quando cheguei ao local disseram-me: «Então, vens vestido de árvore?» Bem, desde essa altura nunca mais fui muito conivente com o verde, com medo que numa distracção me vestisse de novo de árvore.
Mas o vento que me puxou o capuz para trás continua a soprar com força e deixo que me sopre os cabelos, me passe pelas orelhas. Consigo senti-lo no couro cabeludo. Não faço força para puxar o capuz para trás, deixo que o vento me feche os olhos e a chuva que ficou miudinha me encha os óculos de pequenas pingas.

Volto a puxar o capuz para cima, aperto um pouco mais o impermeável verde, para me proteger da chuva, pouco me importando se tenho umas calças castanhas ou não. Olho em volta e vejo-me a mim com várias idades, as minhas irmãs, os limões que primeiro roubámos e que depois deitámos no marco do correio da esquina.
A chuva na cara desperta-me. Passaram apenas alguns segundos desde que saí do prédio e fiquei a olhar para o largo e para os carros. Agora tenho que ir fazer aquilo que me levou a sair de casa neste dia de chuva.

Monday, October 24, 2005

Castanhas e Raízes

Choveu a chuva que tinha que chover: uma chuva pequena e contínua, uma chuva que não magoa o campo, uma chuva que pousa suavemente nas superfícies. Choveu durante dois dias seguidos. O ar encheu-se de cheiro a Outono e comecei a sentir falta das castanhas assadas, do fumo que se espalha. Desci ao Rossio para comprar uma dúzia. (Como agora poderia falar de tantas cidades, de tantas cidades têm um Rossio e um vendedor de castanhas assadas no Rossio.) A minha cidade tem um Rossio e um vendedor de castanhas assadas no Rossio.

Não sou, de forma alguma, personagem conhecido na minha terra natal; sou mais um anónimo, que tanto podia ser um estudante do Instituto Politécnico como um filho da terra.
Gosto que os regressos a um sítio que me habituei a chamar casa sejam anónimos, que o contacto seja muito limitado, apenas com a família e aqueles amigos mais chegados. Porque deste sítio que me habituei a chamar casa, arranquei as raízes há muito; mesmo no tempo em que mais andava perdido, não consegui descortinar um norte e um ponto de origem. As raízes que me prendem à terra, que me fazem regressar são afectuosas, emocionais. Têm a ver com pessoas, não com um sentimento de pertença.

Tinha já na mão o meu embrulho de páginas amarelas com doze castanhas e mais algumas porque «o menino é muito simpático e eu conheci o seu avôzinho». Não é assim que se passa, ninguém sabe de quem eu sou neto, levo as doze castanhas contadas e não me importo muito com isso. Sei que dessas todas vou comer apenas sete ou oito, que as outras estão podres. Retoma a chuva a sua dolente queda, o papel que embrulha as castanhas passa tinta para as minhas mãos. Resguardo-me na porta grande do Palácio da Póvoa e fico a olhar as pessoas, o quiosque, os carros.

Sempre achei que ser alentejano tinha muito a ver com o facto de se ser triste. A solidão e calor do Alentejo, as casas no meio de nada impelem a sentimentos de ausência e tristeza, a uma religiosidade há muito esquecida. Continuo a procurar a minhas raízes e continuo sem as conseguir encontrar. Suponho que todos necessitamos que um lugar onde podemos voltar, ao qual nos sentimos em casa. E se nos sentirmos bem no mundo, sem lugar definido?
Sinto afinidades com esta terra triste, com esta terra queimada e esquecida. Sinto que pertenço tanto a este povo sofrido, como a outro mais audaz e aventureiro; sinto esta religiosidade pacífica das horas mortas do fim da tarde, a espantar a solidão; sinto o hedonismo citadino. Sinto que as minhas raízes não passam de um nome que já esqueci.

A chuva parou. As castanhas ficaram frias e molhadas. Começo o meu regresso a casa, à casa dos meus pais. Por mim passam alguns estudantes do liceu que experimentam os primeiros cigarros e as primeiras línguas. Rio-me para dentro ao pensar que também já tinha fumado às escondidas; depois fumei às claras e por fim deixei de fumar.
Descobri que o amor não se descobre na adolescência, que nessa idade é um conceito demasiado vago para se levar a sério. Mas descobri que quando se descobre, percebemos, sentimos os coração acelerar sem porquê, sentimos que não encontrámos alguém igual a nós, mas sim alguém que nos completa. Descobrimos que o valor do amor está na partilha, no carinho. Que o valor está em ser a dois, de igual modo, de igual forma, de igual tamanho, enorme.

Saturday, October 22, 2005

Pele

Olho a pele enrugada das minhas mãos, olho-as como se pela primeira vez estivesse a contemplar com a devida atenção as cicatrizes coleccionadas ao longo dos anos. Olho as pequenas manchas que vão ficando, substituindo a pele que outrora foi rasgada.
Desço a correr os poucos degraus que separam a minha porta da rua, espanta-me que consiga correr assim, com os pés descalços. Sinto a chuva que cai sem piedade, a pouca chuva que vai caindo ininterruptamente a pousar nos meus ombros, no meu cabelo, vai-se a cumulando na minha pele, para descer pelos caminhos insondáveis da minha pele, escorre até aos pés; desce a chuva pela irregularidade da pele que tantas vezes pareceu perfeita, imaculada. Fecho os olhos, deixo cair das pestanas a chuva que se foi acumulando. Fecho os olhos, não quero ver o cinzento da rua, o preto do alcatrão quente que me aquece os pés. A chuva continua a cair, na sua dolência leve.

O suor é salgado; é salgado como fazer amor depois de nadar no mar. Quando se lambe a pele sente-se cada rugosidade, sente-se o sabor da pessoa, assim como quando duas línguas se tocam num serpentear de amor. Os lábios que se esmagam uns nos outros, enchendo de saliva a pele circundante à boca. O suor que escorre dos braços, da fronte, a pingar para cima do corpo que aceita isso com o peito aberto.
A pele dos seios, que sobem e descem a cada arquejar de desejo, a pele macia do amamentar materno e amoroso e erótico. As mãos a segurarem a nuca, a não libertar a cabeça do beijo. As pontas dos dedos a roçarem o pescoço, a pele a trocar-se com a pele, as barrigas coladas com o suor salgado do amor, com o desejo frenético da ansiedade.
Os corpos colados pela pele nas noites mal dormidas. Os seios esmagados pelo rosto, a carícia das mãos pelo cabelo, os murmúrios da noite.

A pele azulada da noite, manto velúdico que esconde os amantes, que os cobre com os ardis do amor.