Friday, July 29, 2005

«Os Pássaros» do Gulbenkian

Há um sítio em Portugal em que podemos ser alemães e ninguém repara. Em que podemos levar um piquenique e estar na relva a mordiscar lábios e a mordiscar abrunhos. Em que podemos estar estirados na relva e os pássaros esvoaçam perto de nós.
Os pássaros esvoaçam mas não nos matam, não nos ferem com os seus bicos afiados. Gozam a sua Primavera e o seu Verão perto dos pequenos lagos e riachos que percorrem os jardins da fundação. São uns passarinhos amigos, os do Gulbenkian, não têm nada a ver com os pássaros assassinos do Hitchcock.

Estava deitado na relva, a comer um abrunho, de conversa amena, com a cabeça na sombra e as pernas ao sol; elogiava estes passarinhos tão civilizados e amigos.
Até que um me cagou em cima.

Wednesday, July 27, 2005

Violência da Existência

Senti a dor de cabeça a chegar, com a certeza da nuvem que cobriu o sol durante segundos. Ainda me tentei convencer que não duraria muito e que com a mesma rapidez que a nuvem cobriu e descobriu o sol, também o latejar duraria o tempo da nuvem a cobrir o sol.
Mas a nuvem cobriu e descobriu o sol mais um sem fim de vezes ao mesmo tempo que a minha dor de cabeça se mantinha constante, com uma aceleração de 0. Se tivesse acompanhado a nuvem e o sol, seria uma excelente enxaqueca.

A noite ontem não estava fadada para ser perfeita; um cinema romântico, um pulinho a um bar e depois. O cinema até correu bem, estávamos de mãos dadas, o peito subia e descia com exaltação; não das peripécias vividas pela moça que ansiava pelo seu amor, mas sim pela violência com que o Mickey Rourke esmagava a cabeça de um informador contra o macadame com o carro em movimento. E uma continuação de outros fait divers, o Bruce Willis a desfazer uma cara amarela com os punhos – algo a que já nos habituou – excepto a parte colorida, o Elijah Wood a ser comido por um cão após lhe terem sido cerrados as pernas e os braços, uma prostituta feita Uma Thurman com sabres e estrelas da morte em forma de suástica.
Acabou o filme num clima não apropriado ao romance. Chovia, chovia tanto. Bem, a chuva é romântica, ainda podia salvar a noite. Sugeri:
«Então, vamos dar um saltinho aos artistas?»
“Mas está a chover...”
Merda, ir a esse bar implicava mais de dez minutos a pé, garantindo um bom lugar para o carro perto da baixa. Valia pela decoração, pelo jazz, pela Audrey Hepburn com o cigarro e a boquilha, pelo Marlon Brando no «Apocalipse Now», pelo Robert de Niro no «Taxi Driver». Mais os mojitos, as caipirinhas e o jazz.
“Vamos para casa, está a chover.”
Chuva romântica para a puta que a pariu. Dava uma facada no bucho a quem me dissesse isso agora. Porque ir para casa implicava casas diferentes. Anuí cobardemente,
«Está bem.»
Parou o carro perto da minha casa. Ainda ficámos algum tempo dentro do carro a conversar, a misturar lábios, a disciplinar mãos. Na rua as pessoas olhavam para nós com olhares reprovadores, alguns com olhares de conhecimento da situação. Mas como assim poderia ser, se eles eram velhos desdentados? Nem os olhares reprovadores compreendia, quanto mais os outros.
Um carro passou em frente ao nosso estacionamento três vezes.
Será que os moradores da zona do técnico são todos tão conservadores quem nem um casal de namorados se pode despedir?

O sol voltou e desapareceu novamente. Mas a dor de cabeça mantém-se imutável.

Monday, July 25, 2005

Coisas da escrita

Estava ontem, deitado na cama a uma hora cedo; a minha cabeça latejava de dor e as aspirinas da manhã não tinham ajudado nada. Estava a ler uma revista e encontrei uma crónica de um amigo meu que é escritor, Vicêncio Vieira.

Amigo de longa data e de tropelias várias, discorria alguns episódios que passámos juntos quando me lembrei a sua primeira sessão de autógrafos em Lisboa, aquando o lançamento do seu primeiro livro “Escritos do Escroto”.
Estava o meu amigo sentado numa mesa, quando vem um senhor e lhe pede:
- Podia escrever “Para a Rosinda, que é a minha namorada, com muito carinho e um beijinho muito grande de Parabéns, porque ela faz anos amanhã e que quero oferecer-lhe o seu livro.”
Mas o meu amigo era jovem e tinha em si o fel da arrogância literária, ou seja, encarava de forma muito especial ainda o seu processo de criação, qualquer que fosse a escrita: quer fosse criativa o quer fosse uma merda de autógrafo.
- A mim ninguém me diz o que escrever, respondeu com prontidão, eu sou o único responsável pelo meu processo criativo e escrevo aquilo que me apetece.
Por essas alturas o meu amiga usava uma rebelde melena capilar sobre os olhos e puxou-a para trás com um meneio de cabeça, que lhe dava um ar muito teatral, mas muito pouco literário.
O pobre rapaz estava muito atrapalhado e não sabia o que dizer, balbuciava algumas desculpas que não satisfaziam de todo o meu amigo. Até que é salvo por um outro, Álvaro Antão, agente do Vicêncio Vieira, meu amigo.
- Olha, tens que assinar estas coisas, é urgente. Não pode passar de hoje, ouviste.
E o meu amigo, qual carneirinho amestrado, escreveu o nome próprio no sítio onde o agente lhe mandou.

O rapaz ofereceu o livro por autografar à namorada, o Vicêncio Vieira tem uma crónica semanal e escreve o nome quando lhe mandam e o Álvaro Antão continua a editar livros, mas com menos disposição para madurezas por causa do reumático e da marreca.

Sunday, July 24, 2005

Um olhar maternal sobre a noite

A noite alongou-se quase mais que o dia até roçar as pontas da madrugada.
Para trás deixei uma noite de póquer, de cigarros, de fichas em cima da mesa e de bebida. Mas sem o pano verde.

A minha manhã começou pouco depois da madrugada ter terminado. Ouvia passos pela casa que me indicavam que duas pessoas estavam já acordadas; passos leves, de mulher.
Saí da cama, devagar. Os olhos estavam um pouco colados, assim como tudo o resto que funcionava apenas com o mínimo necessário. Cheguei à cozinha, procurei o material que necessitava. Dei início ao processo: tudo muito metódico e calculado, como estas operações devem ser.
Em pouco tempo os passos que ouvia na cama chegavam-se a mim.
“Ai filho, que cara essa. Ontem devem ter ficado todos bonitos. Ai, vocês não têm juízo nenhum.”
“E aspirinas, onde estão?”
“Estão ali” - disse-me apontando uma pequena cesta - “Mas vê lá se estás maldisposto.”
“Não, está tudo bem.”

Girou sobre os calcanhares e saiu da cozinha borboleteando com a sua habitual boa disposição matinal; fiquei de novo só, com a minha operação a meio e duas aspirinas no estômago a lutar com os restos da noite.
Estava quase finda a operação quando a minha mãe volta entrar na cozinha. Olhou para a minha cara e riu-se. Aproximou-se e deu-me um beijo na cara.
“Devias ter mais cuidado com o teu fígado.”
Olha a porra, pensei, tu que te encharcas em aspirinas e afins falas do meu fígado. E a tua futura úlcera aspirínica? Mas fiquei calado. Voltou à carga, olhando a minha caneca:
“Hum, é café fresco?”
“Não” - respondo já farto das tentativas de conversa - “está a ferver porque tive que utilizar água quente.”
“Parvo” - disse-me.

E ainda levei uma palmada no rabo.

Saturday, July 23, 2005

Multiculturalidade Ibérica

Tentando não sucumbir à rotina modorrenta alentejana, tento alimentar a minha vida de pequenos episódios que me fazem não perder o tino, ou pelo menos o sentido da vida.
Afogava as minhas mágoas da distancia germânica em cerveja portuguesa; infelizmente ainda não tenho dinheiro para comprar vodka nem um médico amigo que me receite valium 10 para conseguir sobreviver, ou pelo menos entorpecer-me o suficiente para me não lembrar de nada.
E estava nos aniversário de um amigo.
E estava sentado numas escadas, na entrada de um bar, com alguns amigos. Maldita província e falta de dinheiro. Nem mulheres bonitas nem vodka. Apenas a morte lenta da cerveja com alguns momentos de verticalidade devido ao efeito diurético.

Entram, de rompante, mulheres. Mulheres gordas, mulheres magras, mulheres feias, mulheres bonitas, mulheres maduras, mulheres verdes, mulheres crianças, mulheres velhas, entram mulheres, muitas mulheres de rompante, mulheres espanholas.
Todas as pessoas do sexo masculino com que me encontrava debutaram diversos comentários. Reconheço que os decotes e as calças brancas possam ser apelativos, a pele acobreada pode dar vontade de tocar. Um sem número de mais valias femininas. Os comentários às mulheres eram de índole diversa; optei por ficar calado, não sou um virtuoso e eloquente participante dessas rodas.
Afastaram-se de nós percebendo o teor brejeiro e popular dos comentários
Continuei calado. Distraído com o cigarro que estava a enrolar, senti no braço um toque muito suave, quase angelical, etéreo. Olhava para mim com uns grandes olhos, um sorriso, cabelos pretos e pele pigmentada de sol e sal.

Ganhei um obrigado mas perdi duas mortalhas e nem sequer fui convidado.

Thursday, July 21, 2005

Histórias e Memórias: Berlim-Londres-Porto-Lisboa-Portalegre

Berlim.
Em Berlim mal houve tempo para despedidas. Também não gosto muito de as fazer; não houve choros nem lenços brancos. Apenas o Çarik com pena de não ganhar mais dinheiro à nossa custa, os velhotes do Café da Córsega que já não olham para nós carregados de sacos de compras do mercado, a menina da padaria que não mais me vai sorrir ou piscar o olho. A mulher mais gorda do mundo teve um princípio de AVC e decidiu-se a pôr a banda gástrica que os filhos e os genros há muito insistiam que pusesse; o Lucas e o Isauro estão felizes, creio que vão para a Holanda tentar adoptar um filho: arrufos são normais em qualquer casal, hetero ou homo.
Saí de Berlim com a alma lavada e os braços cheios de dores, sob o peso cardado de duas malas.

Londres.
Sete horas e dez minutos. Ouvem-se roncos por todos os cantos e pedaços de chão livre; sempre é mais animado que Colónia há três meses atrás, em que se trocaram as cadeiras do aeroporto por um Íbis à mão de semear por mais uns quantos euros. Desde criança ouvi dizer “em Londres sê londrino” e eis que o sou. Vesti o casaco do fato, pousei a mala cheia de fita adesiva para não rebentar com o excesso de volume e carreguei no play do leitor portátil de música para ouvir um álbum de edição única japonesa dos Blur, comprado numa feira da ladra, versão berlinense: “em Londres sê londrino”.
Um ronco especialmente sonoro e o olhar desconfiado de dois senhores munidos de munições nas suas metralhadoras a tiracolo.
Decidi-me pelo cappuccino mais caro da minha vida onde esbarrei com dois portugueses: felizmente iniciei a conversa em inglês, tal é a minha lusofobia.
À minha frente uma moça inglesa bebe chá e observa, pelo rabo do olho, o meu bater de pé ao ritmo da música que não ouve, a minha frenética escrita enquanto enrola um cigarro. E ainda a família inglesa: a avó ensina os lavores à neta através de uma revista adquirida à cinco minutos atrás com a intenção de pelo natal próximo oferecer toalhões bordados a todos os membros da família; o filho lê avidamente o último livro do Harry Potter, vendido no aeroporto por 11.99 libras, feitas as contas 16.79 euros; o pai cabeceia para cima do copo de chá em cima da mesa; a mãe comenta, com uma amiga, via mensagem de texto do telemóvel, os novos escândalos da família real que também tive oportunidade de ler nas letras grandes do Sun e do Daily Mirror.
(...)
Faço check-in daqui a uma hora e meia. O meu cappuccino caro e gelado já está acabado e a última golada foi tudo menos gelada. Desinteressei-me da rapariga que me olhava pelo rabo do olho quando reparei nos pés visíveis pelas sandálias que usa. Há muito que não vêem uma lavagem, ao que parece.
Em cima da minha mesa: um maço amarrotado, um cinzeiro com as beatas dos meus três últimos cigarros, uma caixa de fósforos, o telemóvel, um isqueiro, 68 pence, o marcador do bloco de notas, o leitor de música, uma garrafa de água pela metade, o copo do cappuccino vazio. Um bloco de notas e uma mão bastante frenética que segura uma caneta que escreve a preto e vermelho e ai da tem lapiseira.
Duas crianças, a uma distancia de seis metros, com quatro e seis anos, abraçam a mãe com verdadeiro amor edipiano. Gosto mesmo de longas esperas em aeroportos, da familiaridade casual das pessoas que esperam e roncam espalhadas pelo chão e pelos cantos. Gostava mais se a minha companhia não fosse eu próprio.
Abro a mochila, tiro o outro tabaco e enrolo um cigarro. Para acompanhar com o meio litro de água que me resta e com a sanduíche que esperava que durasse até Portugal.
Toca aos meus ouvidos: “Wrestling with words at last.” Enfim.

Porto.
Fechei os olhos para não reconhecer que estava em Portugal. Fiz mal; porque quando tive que os abrir reparei numa inglesa que trazia uma mini saia muito mini e que tinha andado na fila sempre à minha frente.

Lisboa.
Um dia mais tarde, hoje mesmo de manhã, ia com uma das minhas irmãs no metro. Aparece no fundo da carruagem um acordeonista a tocar e a pedir. Cheguei a mão ao bolso das calças e senti a carteira; queria dar-lhe algum dinheiro e lembrei-me que era pobre. Olhei a carteira e pensei: “não tenho dinheiro para mandar cantar o ceguinho, quanto mais para mandar cantar um que vê. Ora esta.”
Gastei o dinheiro num álbum da Nina Simone.

Portalegre.
Supostamente casa. Mas já não o é. Deixou de o ser.
Lamento. Ou não.

Sunday, July 17, 2005

O Pão Nosso de cada Dia e as últimas histórias de Berlim

Todos os dias o nosso pão é comido.

As desventuras berlinenses continuam, lamentavelmente quase no fim. Já a cidade tem, nesta luz dourada e crepuscular um cheiro a saudades. Passei pelo Café da Córsega e olhei os velhotes. Tão cedo não os vejo, assim como o nosso amigo Çarik:
o Çarik vendia-nos a nossa DDR de pistachos, cajus e pevides. Aquilo que nós necessitávamos quando parávamos nos parques onde víamos tantos outros Lucas e Isauros, assim como Helgas e Evas.

Mas nem tudo tem esta toada delicodoce.
Um dia em Leipzig. Cidade muito bonita e tudo mais. Foi o meu primeiro piquenique na Alemanha apesar de muitas vezes ter estado em parques. Assámos salsichas, pimentos, beringela, cogumelos. Mas o lume apagou-se; e agora? Agora espera-se que acabe de chover porque as nuvens parecem passageiras. Fomos ficando e ficando. E toca de correr para o comboio. A porta fechou-se à nossa frente; pedimos por tudo à senhora que no-la abrisse. Não, num alemão simples e eficaz, com aceno a condizer, disse-nos que não. Implorámos em inglês e em arranhos de alemão. O comboio arrancou e ainda tive tempo de dizer, em português «Vai à merda!»
Depois não há muito mais para contar. Ficámos na cidade e embebedei-me.

As nossas visitas gostaram da casa; fomos ver a escola de Belas Artes, de Design e de Multimédia, em três exposições que duraram o dia.
E ainda fomos sair à noite, nada de tropelias. Num bar, grande, calmo, para pessoas grandes ou calmas
Tantos casais iguais: homens com homens e mulheres com mulheres. Fiz questão de juntar os meus lábios aos da Susana de dois em dois minutos. Só para ter a certeza. Ainda por cima estava a fumar Camel.

Deitados, corpos cansados e bem aninhados.
«Sabes, fui pôr Nouvelle Vague para ouvirmos bem baixinho antes de dormir. Mas para não incomodar ninguém pus tão baixinho que nem oiço.»
Risos.
“Oh, pensava que não estava a tocar nada e desliguei o amplificador.”
Gargalhadas.

Friday, July 15, 2005

Erdinger Weissbrau

Leipzig
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Finalmente bebi as minhas cervejas alemãs. Misturadas com vinho tinto e vinho branco. Cerveja de trigo e muito forte.
Devias ter juízo Miguel Ceia.
É bem feita a dor de cabeça.

Thursday, July 14, 2005

O café da Córsega e mais histórias de Berlim

Todos os dias passo por um café. O café chama-se Oyzeri To Steki Cafe. Duas vezes por dia. Quando voltamos para casa, por volta das oito, nove horas, há sempre um grupo de senhores turcos que se junta à porta, numa espécie de esplanada a conversar sobre o tempo, sobre os véus que as mulheres usam. «Epá, o véu daquela dá cabo de mim, rasgava-o todo com os dentes». Obviamente que não passam de desejos; porque eles são velhos e já não são atraentes as e porque eles já não têm dentes. Tenho tentado reconhecê-los, dia após dia. Difícil, nem sequer o bigode consigo decorar. Mas há um que desde o primeiro dia o reconheço e que nos rosna, olhando de soslaio. O cão que guarda o café da Córsega.

Ontem fui a um parque. Estávamos os dois de conversa muito românticos, beijinho aqui, beijinho ali. Nada que não se estivesse a passar à nossa volta. Eis se não quando, à nossa frente, algum rebuliço.
Um casal de homossexuais acabava de dar início a um arrufo de namorados. Eram eles o Lucas e o Isauro. Um fez menção de se levantar e ir embora, o outro puxou-o pelo braço, uma cena digna da mais romântica telenovela mexicana. Voltou a sentar-se. Ficaram calados, a contemplar o céu, a ponderar aquilo que os unia. Sempre sem se olharem, Lucas e Isauro. Chegou um terceiro elemento, que voltou a juntar o casal desavindo.
Naturalmente não estava muito interessado, preferia os beijinhos que me estavam a dar.
Não os vi sair, mas tenho a certeza que passaram um fim de tarde fantástico, assim como o início da noite. Os três.

O que é que a culinária portuguesa e italiana têm a ver com um cozinheiro indiano e um mercado turco? Nada. Aparentemente.
Depois de voltar do parque fui para casa. Comer, que era muita a fome. Ela ficou com o pesto e eu com o gaspacho. Não vivermos sozinhos, partilhamos a casa com mais três galifões alemães. Simpáticos. Ora, um após outro, foram-se sentando e perguntando o que era aquilo que estávamos a culinar . Depois da primeira pergunta, a outra. Podemos provar? Claro que sim, quem somos nós para recusar alimento a uns pobres que só comem coisas de lata. Estava bom; por boa educação não repetiram.
Até à estocada final. Entra uma amiga de um deles com duas cervejas. Perguntou logo quem tinha culinado, conhecendo bem os cantos à casa. Provou, gostou e comeu. Até ao fim.
O Woody Allen ia ter inveja da minha vida.

Tuesday, July 12, 2005

A mulher mais gorda do mundo e outras histórias de Berlim

Ontem fui ao pão. Estou a tornar-me uma pessoa muito saudável e bem disposta; realmente o género de pessoas a quem a vida lhes sorri e nós sorrimos de volta, naturalmente. Fui ao pão e não vi nada. Mau, pensei, quem é que deixou o elefante na padaria? Afinal o paquiderme que se afiançava aos pães era uma mulher, a mulher mais gorda do mundo.
Toda ela se agitava em gordura, em roscas de gordura destilada e transparente. Continuar a descrever seria ofensivo. Pedia mais um pão, um bolo, uma bola de Berlim – ou não estivéssemos em Berlim – qualquer coisa para o cão. Enfim, deixou lá dez euros. E com as suas roscas a abanicar saiu da loja, a muito custo, com a respiração asmática devido à gordura que lhe oprime os pulmões.
E aí tudo se resolveu. Dei um passo em frente, pedi o que queria em inglês. E no final ganhei um sorriso e um piscadela de olho. Ainda bem que a mulher mais gorda do mundo estava lá para eu depois poder ganhar umas polidelas de ego.

Alguns dias antes; andava a fazer o reconhecimento da zona onde estava sitiado. Passei por um barbeiro turco. E o que é que o barbeiro turco tem diferente dos outros barbeiros? Aparentemente nada, mas tem. Faz o corte de cabelo turco especial, aquele que mais nenhum povo europeu u asiático consegue fazer. O corte de cabelo turco segue parâmetros muito exactos e há o corte de cabelo turco para o papá para os filhotes e até para a mamã, embora este último não se veja devido ao véu que lhe cobre a cabeça. Querem saber como é? Vejam os jogos da Liga dos Campeões que envolvam equipas turcas.

Vi, há duas noites atrás, a polícia a repreender veementemente alguns jovens turcos que se envolviam em desacatos com outros habitantes do bairro. Começou por ser apenas um grupo de quatro adolescentes e um adulto para acabar por ser os quatro adolescentes, dois adultos e uma valente matrona – não, não era a mulher mais gorda do mundo – a reclamar com a polícia. Tudo por causa do hip-hop turco intervencionista contra os malandros dos alemães que os tratam mal e até os deixam viver nas suas cidades. Conversa de reaccionário? Ná, era o que o hip-hop dizia.

Pior; a pior história de todas. Estava eu num parque, bandulho cheio e refastelado quando me dei pelo terrível facto: estou na Alemanha há quase duas semanas e ainda não bebi uma cerveja.
Devias ter vergonha Miguel Ceia.

Monday, July 11, 2005

Chuva Seca de Berlim

Dias de descanso, estes primeiros. Muitas horas longas a recuperar o sono, a devolver o descanso ao corpo. Sabia bem olhar para a rua, ver os pingos grossos de chuva, os pingos que também caíam dos olhos assim que estes viam muita luz.

Parou a chuva e os dias na cama. Sei que são duas semanas, mas também é desperdício. Estou numa casa com tectos muitos altos, no meio de muita gente turca; não é mau, vivo de falafel e pistachos.
Ainda não me atirei aos turismo citadino, vi apenas um memorial do holocausto dedicado ao judeus. Suprema injustiça, não terão outros grupos minoritários sido também chacinados com igual violência?

Enfim. Corri uma rua que me interessou bastante, a Kastanienallee; um local onde a cidade pula de vida, onde se pode realmente ver como é Berlim. Conhecem-se as cidades não só pelos monumentos que agregam, mas também pelo estilo de vida que as pessoas levam ou pelos hábitos que nós desenvolvemos quando com elas contactamos. Estive deitado num parque – óptimo hábito, este, que desenvolvo sempre que venho À Alemanha – e simplesmente estive. Vi as pessoas, vi-me a mim próprio pela objectiva de uma máquina fotográfica digital.
Gosto da parte leste. Desci a Karl Marx Allee para depois a subir de metro. Lembrei-me do filme «Goodbye Lenin!» e calculei que vivessem num daqueles prédios.

Fui proibido de tirar fotografias num cinema fantástico, «Kino Internacional», tinha uma espécie de carisma bondesca com laivos de «Radio Days» do Woody Allen.
Descobrimos alguns cinemas em que se vêem filmes no original: em dois dias «Garden State» e «Bonnie & Clyde».

Há tempo para aquelas saudades e para os amigos que enviam MMS, que fazem com que o coração fique bem apertadinho.
Na aparelhagem toca Nouvelle Vague. E o coração aperta mais um pouco. Atrás de mim uns braços enlaçam-me a cintura e uns lábios roçam-me o pescoço.
Até amanhã.

Wednesday, July 06, 2005

Hauptbahnhof

Cheguei ontem e já estou de partida; olho para as malas a medo, parece que a qualquer momento há uma revolução e as roupas saem lá de dentro, organizadas em fileiras de exército, flanqueando o meu movimento de fuga. Marcham e cantam:
“Vamos esmagar-te porque nos esmagaste/Vamos esmagar-te porque nos esmagaste” numa cadência militar sem fim.

De estação de comboio em estação de comboio. Destino: Berlim.
Sinto já nos meus braços a sensação esmagadora das malas que pesam, mas que trazem lá dentro a inebriante sensação de descanso, aquela dos parques, de há três dias atrás.

Consigo sentir já nos meus ouvido, a dolente cadência das rodas do comboio a passar no encaixe dos carris. Aquela sensual sonolência que nos leva a mente a despertar, a dormir.
Partilho o banco do comboio com os olhos verdes que velaram o meu sono; estão eles fechados agora, velo eu pelo seu sono.
A cabeça encosta-se ao meu ombro.
Com um pequeno toque de lábios digo: «Chegámos.»

Tuesday, July 05, 2005

Melancia Esquizofrénica

Nunca tinha eu visto uma melancia amarela, tão pouco provado. Tem um nome bastante sugestivo, melancia de mel: parece que o próprio nome escorrega pela língua. Dá vontade de provar e é mesmo muito, muito boa.

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Isto foi só um pequeno abrir de apetite porque a parte boa veio depois: uma sandoca de maçã, queijo de cabra, alface roxa, mel e sementes de sésamo. O pão nem sei bem como o descrever, é qualquer coisa de muito especial. Consegue encostar a um cantinho o meu pão alentejano e eu nestas coisas até sou muito bairrista.

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Provem quando tiverem oportunidade, acreditem que não se vão arrepender. Nada, nada mesmo.

Monday, July 04, 2005

Notas de música, muitas

Neste momento chove e troveja; não posso sair de onde estou.
Ouço Portishead ao vivo no Festival do Sudoeste, Agosto de 1998.

As lavagens de alma continuam...

Sete Notas Soltas

Revejo-me aqui à três meses atrás.

Subo, com um escadote, para um pedestal límbico. Sou agora deus-omnipotente-omnipresente; olho para mim com menos três meses, olho para mim agora. Não deixo de esboçar um benévolo sorriso, como bom deus que sou. Mudei muito, mas tê-lo-ei notado? Não, longe disso. Fizeram-mo notar? Também não; mentira, talvez um pouco, de há três semanas para cá.

As pessoas mudam, eu quero acreditar que sim. Tenho pensado muito nisto. A mudança que se processa no dia a dia não é notada, porque é mínima, quase irrisória. Nota-se em grandes espaços de tempo. Sou deus, olho para a frente e para trás, faço analepses e prolepses e tudo sei.

Olhando para trás, dois, três, quatro meses, verão que todos mudámos. Uns mais rapidamente porque acharam que era altura de mudar, outros sucumbem à inércia do conforto ilusório, aquele que nos adia o futuro. Custa-me ver pessoas sucumbirem dessa forma, a deixarem-se perecer; custa-me porque são pessoas de quem muito gosto e sabendo que eu próprio estive já sob o poder dessa inércia, sei o que dela custa libertarmo-nos.

Estou com a perspectiva de duas semanas em Berlim; já vi uma exposição muito boa (www.pier-der-wissenschaft.de) e espero continuar a encher-me de cultura até transbordar. Porque, para quem como eu, vive em Portugal, às vezes são preciosas estas lavagens de alma.

Acordei e vi os mais lindos olhos a velar pelo meu sono, olhos verdes e profundos. Domingos não são dias para passar em casa; gosto de passear de chinelos e calças de ganga rotas, gosto de passear e sentir a mão que segura a minha, gosto de me deitar na relva e sentir que usaram a minha barriga como almofada (suponho que seja confortável – lá fofinha é).

Espera-me um jantar de sushi e sopa miso. Não é só uma lavagem de alma, é também de paladar.
(E agora, em crescendo, o final de guitarra do “I Want Wind to Blow” dos The Microphones).

Friday, July 01, 2005

Socialmente Inadaptado

Desde crianço que me dizem que sou muito sociável e simpático. Era, sou; nem sei bem que tempo verbal hei-de usar.
Dou por mim a pensar até que ponto serei/seria eu simpático, ou que os meus sorrisos eram de genuína simpatia. Não que não goste de pessoas, até gosto de conviver, mas sou mais solitário que social. As origens do meu carácter mais solitário derivam de questões familiares, não que estas sejam de importante monta ou que eu seja perturbado – embora às vezes... – simplesmente foi assim. E o que nunca ninguém se dignou a reparar foi que eu sorria por timidez, não por charme. Ao invés de fechar o semblante, sorria. E assim ganhei a fama.

Tenho dificuldade em iniciar uma conversa, há pessoas com as quais tenho uma inabilidade enorme de conversar. Enorme não, total.
Isso acontece nas mais diferentes ocasiões. Complexo ou não, mania da perseguição ou não, teoria da conspiração ou não, a verdade é que em grandes situações de socialização sinto sempre que estou um pouco de lado, sinto sempre que não sou capaz de me sentir integrado. Não que isso tenha grande influência na minha vida social, até já me disseram que sou boa companhia. Eu é que me sinto assim.
Sinto é que a minha vida passa por mim eu não me dou bem conta, uma estranha sensação que me liberta de uma inércia de dez anos em que não fui feliz e que me diz que só agora comecei a viver.
Pena é ter perdido dez anos em coisas que quase não lembro e que podiam ter sido aproveitados em coisas boas. Pena é eu ter deixado as coisas chegar a um ponto em que quase, quase bati no fundo; senti o dedo grande do pé a roçar a lama e lodo do fundo.