Sunday, January 30, 2005

O relógio da cozinha

Há muitos anos atrás, vivi dois anos em casa dos meus avós. Tive cinco e seis anos nessa altura. A casa é muito antiga, grande; um rés-do-chão com um corredor de onze metros com uma dispensa no fim, quatro quartos (um deles com casa de banho), uma casa de banho, uma cozinha com copa e dispensa, sala com sala de jantar anexa. Dois quintais, um à frente e outro atrás, com uma pequena casa onde guardávamos as bicicletas.

Há todos esses anos atrás, havia um relógio na cozinha, um relógio bem antigo, sempre certo, metódico e barulhento, como qualquer relógio que se preze deve ser. Estava situado na copa, por cima da arca em frente à camilha onde, inavrialvelmente, nos juntávamos ao fim da tarde. Foi nele que aprendi a ver as horas. Isto no final dos anos oitenta. Mais ou menos na altura em fui viver de novo com os meus pais ele, que era redondo, foi substituído por outro, quadrado, mais moderno, de novo mais uma prenda do meu avô para a minha avó. O outro, o primeiro, ganhou lugar cativo na dispensa no fundo do corredor, arrumado.

Pouco antes deste natal fui dar com ele e pedi-o à minha avó. Ela deu-mo, sem pilha, mas com a garantia de que estava em perfeito estado. Não tinha sido substituído por avaria, mas por ser um pouco retro, antiquado. Bem, não foram estas as palavras exactas, mas o espírito era esse.
Estive um mês fora de casa. Razões várias. Este fim de semana quando voltei, o relógio funcionava no meu quarto, saudades do barulho, do marulhar dos ponteiros, do som mais forte de quinze em quinze minutos, uma relíquia sessentista. Ainda ontem, me deixava dormir a ler uma revista qualquer e encontrava nele um conforto infantil, uma espécie de nostalgia dos tempos em que tudo era simples. Dormi bem, esta noite.
(Sei que hão-de vir noites mais complicadas, insones, em que não suportarei o peso do som do relógio, mas agora sabe-me tão bem; além dos lençóis quentes, dos cobertores e das mantas, tenho esse aquecer por dentro que é o mais poderoso, que parecem dois braços que me abraçam e me aconchegam na noite. Porque, para um abraço são precisos dois braços; e para dois abraços quatro braços.)

Virei o relógio para ver o mecanismo, a parte de trás. Dizia: trinta e um de março de mil novecentos e sessenta e dois.

Teach Me Tiger


(Teach me in the morning)


(Teach me how to bite)


(Teach me how to crawl into the night)

Saturday, January 29, 2005

Viagens e Viajantes Pouco Viajados

Longe de casa, tão longe. E o retorno. Évora, Lisboa, Évora, Porto, Évora e Portalegre, por fim. Quilómetros e mais quilómetros sem fim. O cansaço sentido no corpo. Mas não foi só assim o mês que agora finda.
(H)ouve a música, o início do fim e muitas noites. Volto de mais um bar, e apesar deste ser conhecido de há muito, começa a ser estranho, começam os rituais noctívagos a não agradar.

Fui a Serralves. Tirei fotografias que gosto. São muitas, ponho poucas, nada elucidativas, mas as que agora me parecem bonitas, amanhã mais bonitas outras serão, mas agora gosto mais destas. Noutra altura ponho outras.

Eu num espelho.


O Tiago e a Ana.


A saída do Porto.



Gosto de viajar. Gosto do ar carregado que fica dentro do carro quando o ar já foi respirado e re-respirado, tenso. os corpos cansados acomodam-se no banco de trás, sonolentos, dorminhocos. A música sempre inconstante, a estação sempre a ficar estática. As rodas sobre o asfalto, os travões, quentes, quentes, os olhos a fechar. Ainda ter que guiar um pouco.

Foi um mês, o último Janeiro assim, não vai haver outro, como nunca houve, mas este foi melhor.
Por quem sou, por quem és, por quem somos, por quem somos e fomos; e agora, tocar para a frente com a uma pontinha cá dentro a dizer que vai tudo correr bem.
É capaz de correr, mas o medo ninguém no-lo tira. Acho que é mesmo assim, mas a pontinha é um pouco de certeza. Há, sem dúvida alguma, inércia à mudança, mas a verdade é vai tudo correr bem. Eu sei que vai.

Sunday, January 16, 2005

Às vezes...?

Esta canção que aqui deixei, não é minha.
Mas a letra e a envolvência da música mexem com toda a minha sinestesia, com todos os meus sentidos.
Diversas vezes a ouço, gosto especialmente de a ouvir nas manhãs após a noites compridas; melhor, quando essas noites se estendem até às madrugadas e temos que guiar para uma praia onde acabamos por adormecer na areia à medida que o primeiro sol nos aquece.

Dei por mim há três dias atrás a guiar numa ponte de dezassete quilómetros e a ouvir essa música. As luzes dos carros ao meu lado e os que vinham de frente aumentavam a sinestesia, aumentavam a sensação de não caber no meu corpo. Um enorme arrepio que sobe pela espinha e nos deixa a tremer.



Tuesday, January 11, 2005

We Can Work it Out

«After the alcohol and the aniversary
Used to be happier with a memory
And all of the taxi cabs
That was it to drive
Put it in a line
A n d n e v e r d i d a r r i v e d
How many episodes will you put us through?
Before you realize there's better things to do
How many autographs can anybody sign?
B e f o r e t h e p e o p l e g e t t i r e d , s t a n d i n g i n l i n e
And I got to let you know
Got to let you know
Got to let you Know
ThatWeHaveWorkedItOut
Got to let you know
Got to let you know
Got to let you know
That we have worked it out
What we have, we have now
You and me can work it out

DrOvE dOwN tHe BrOoKlYn BrIdGe In YoUr ExPeNsIvE cAr
A n d must all your magic plans, left it at the bar

HOW MANY ACCIDENTS CAN A SINGLE PERSON HAVE?

Before they can't go back, before they can't go back
And I got to let you know
G o t t o l e t y o u k n o w
Got to let you Know
That we have worked it out
Got to let you know
Got to let you know
Got to let you know
That we have worked it out
What we have, we have now
You and me can work it out»

Sunday, January 02, 2005

Tango a Tantos

A madrugada começou escarlate com o sol a nascer no meio da serra. Lembrava-me de tantas coisas.
Senti dentro de mim uma canção, a voz dela a escorrer pelas minhas mãos e a desembocar nos lábios que a murmuravam. Tentei encontrar a letra da canção, mas não consegui; fica o fragmento que mais me toca.

"How many accidents can a single person have?"

Repetia-se esta frase dentro de mim com uma insistência indicativa de que lago tem que mudar. Não por ser ano novo, mas porque está na altura de mudar. Voltei a olhar para a rua: a nuvens já não eram escarlates, o sol estava mais alto e o céu tingido de um cinzento e azul, uma manhã de sabor cálido, mas fria. Enrolei-me mais dentro do saco-cama, estava com tanto frio. Deixei de murmurar, mas cantava para dentro.
Lembrei-me do trailer do "Personal Velocity", o filme que deu nome a este blog, lembrei-me do fascínio que tenho por uma das actrizes, a Parker Posey.


Fiquei a olhá-la, pela porta entreaberta entrava um vento. Sabia que já não ia dormir mais, não interessava. Da sala ao lado, a da lareira, já vinham vozes ensonadas. Fui ter com eles, sentei-me em silêncio a olhar para as chamas. Voltei a pensar na Parker Posey e nos acidentes.
A arrumação foi rápida, em pouco estávamos dentro dos carros a voltar. Ainda houve uma tentativa de café, mas não resultou. Em casa comi duas torradas. No rádio da cozinha está um álbum que lá deixei propositadamente.

Ele cantava
"É a dança mais punjente
Mão atrás e outra à frente
Valsa de um homem carente
Mão atrás e outra à frente."
Mais a Parker e os acidentes.