Wednesday, August 31, 2005

Pessoal

O tempo virou velocidade e o que era Junho virou Julho que se tornou Agosto e desembocou em Setembro.

A velocidade pessoal é algo que acontece sem que saibamos como; meses atrás o tempo era uma marcha lenta, uma cadência dolente que demorava a passar. Tornou-se então sem medida, ausente de presença, esquecido e rápido, o tempo.
O tempo é agora um esgotar de dias muito rápido, que vemos escorregar pelas mãos como areia, que vemos desaparecer à nossa frente, que vemos fugir de nós que tentamos que ele pare, que se torne imóvel, que volte à dolência cadente da lentidão.

Ofereceram-me, há alguns dias atrás, uma galinha com forma de ovo. Uma galinha de metal que se dá corda e ela bica o que há para bicar, em cima da mesa, onde habitualmente a ponho. Bica restos de alguma coisa que comi perto do computador, restos de pensamentos, ideias, algumas notas de música que vou ouvindo para não me sentir.
Embora não muito supersticioso, há hábitos que crio sem saber bem como nem porquê. Já não sou capaz de começar a trabalhar sem dar corda à galinha; como se o acto de bicar a mesa, significasse que estava a apanhar os restos de ontem, abrindo espaço para as ideias de hoje. Ou então o acto de dar corda simbolizasse que estaria a dar corda à capacidade de criar. Estranho é, por simbólico que pareça, que quando dou corda à galinha, altera-se a capacidade de trabalho.

Dou por mim a sorrir quando ouço uma música que nunca tinha ouvido antes. Lembro-me de mais umas quantas melodias que me trazem este sentimento de quase-felicidade. Porque a música não é feliz, traz em si um sentido de esperança, como se significasse a alvorada de uma nova fase.
E é. A noite foi passando bem quente durante o Verão. E o dia antes do Outono ter início é em si o início do Inverno. E olho pela janela, as nuvens que cobrem Lisboa, trazendo um Outono antecipado, a alvorada do Inverno duro e ríspido, de um frio nunca antes visto ou sentido.

«Map Of What Is Effortless» – Telefon Tel Aviv

Sunday, August 28, 2005

Outono Estival

Os dias têm nascido frios. As noites esquivam-se para dentro dos lençóis, escorrem por entre os corpos, espalham um frio outonal no final de Agosto.
Estava em casa, a conversar, a olhar para televisão desligada – prática corrente, nos dias de hoje. Sugeriram-me música, qualquer coisa alegre para contrastar com ambiente modorrento, com o calor que empastava os movimentos e enrolava a língua. Sentia-me fundido com o sofá, como se começasse também eu a ficar daquela cor de vinho, com as pequenas irregularidades da textura. Fui até ao leitor de música. Sugeri um, dois, três álbuns.
«Meu Deus, tu ouves música tão deprimente.»
Ouço? Nunca me tinha conta. De certeza?
Acho que ao longo do tempo me fui habituando a ser triste; acho que ao longo do tempo me fui habituado a ser triste. Lembro-me uma vez de uma citação de um livro que já não me lembro o nome. A citação, essa, tenho-a muito presente: “É natural que a beleza nos entristeça porque sabemos que é efémera.” Acho que era de Jostein Gaarder.

Não conseguíamos chegar a um consenso sobre a banda sonora da nossa conversa. Decidimo-nos por um álbum sensual, de uma cantora negra já morta. Voltei ao sofá onde me acolheram, onde me encostaram a cabeça ao peito. Sabia-me bem os movimentos do respirar e os batimentos do coração. Fez-se a noite madrugada e eu fiquei sozinho. Batucava na minha cabeça o que me tinham dito «Meu Deus, tu ouves música tão deprimente.»
Deitei-me com isso. Pensei na música que mexe comigo, naquela que me faz pele de galinha. Serei assim tão triste? Estarei assim tão impregnado com a decadência humana e com a ausência de felicidade? Não, nem nada que se pareça. Então qual a necessidade de ouvir música tão pesadona, tão visceral.
Não consegui dormir, voltei à sala e olhei para os álbuns que tinha à disposição. Resolvi-me a ouvir um que tem muito piano. Ouvi os cinquenta e dois minutos até ao fim, li o libreto dessa ópera da tristeza. Na faixa nove ouvi chorar.
Fui-me deitar, na esperança de conseguir, desta feita, dormir. Ainda não, mas também já não me conseguia voltar a levantar para mais cinquenta e dois minutos de catarse.

Por entre o estore, as luzes da rua entravam, preenchendo o quarto com sombras. Olhei para o tecto do quarto e revivi uma conversa no carro, a caminho do restaurante. Era sobre a felicidade.
Sou feliz, sem dúvida alguma. Mas gosto de música triste.
Não é contraditório nem paradoxal, as pessoas são felizes e tristes ao mesmo tempo, as pessoas têm defeitos e qualidades, as pessoas gostam e detestam.
Mas sou feliz, sem dúvida alguma. E gosto de música triste.

(Ler a ouvir “The Boatman’s Call” (1997) de Nick Cave & The Bad Seeds)

Friday, August 26, 2005

A sala escarlate

A noite foi-se tornando longa e mais longa, cada vez mais. As vozes foram soando baixas e mais baixas, cada vez mais. Os copos já estavam vazios, cada vez mais; como se as gotas de vinho regressassem à garrafa após terem sido votadas ao abandono.

Caminhei pela casa no silêncio nocturno; ouvia pela casa as respirações sossegadas e profundas. Nem essas me traziam o devido sossego, acordavam-me, mantinham-me desperto, embrenhavam-se nos meus ouvidos como os carros a passar, céleres, na avenida, Seis andares abaixo.
Horas antes, algumas horas antes, conversava ao telefone na varanda. Varanda onde tantos cigarros fumei. Num momento em que notaram a minha ausência perguntaram
«Estás a fumar não estás?»
Por acaso não estava, mas as minhas mãos crispavam-se no parapeito de ferro verde. Sabia que as mãos se sujavam de pó naquele momento, do pó escuro, citadino. Não, não fumava.
«Estás ausente, passa-se alguma coisa?»
Observava a polícia montada, desmontada, ao lado dos dois cavalos. Para ver os cavalos, duas prostitutas tinham-se aproximado. Não traziam o ar de engate, queriam ver os animais; antes de serem prostitutas eram mulheres, pessoas. Contava isto a quem me notava ausente. Senti um sorriso, do outro lado do telefone.
«Ora, não te admires que eles estejam a conversar, antes de serem polícias, são homens.»
Ri-me. Desviei o olhar do que se passava lá em baixo. Uma quinta pessoa, aproximava-se do grupo, uma quinta pessoa masculina. Despedimo-nos.

Regressei para dentro, à sala. Sentei-me numa cadeira com assento giratório, coberta por uma pele de leopardo e tentei concentrar-me na telenovela que se via. Esforço inglório, não fui talhado para tamanha ausência de pensamentos, já não consigo ter somente parte passiva naquilo que vejo. Tive vontade de esbofetear um personagem, esticar a mão e despejar-lhe um par de latadas na cara.

E lembrei-me do último filme que vi, “De tanto bater o meu coração parou”.
Fui à cozinha, abri o armário; abri o outro ao lado e descobri o que queria. Enchi o copo com vinho e regressei à sala. Num momento em que o silêncio tomou conta de todos, liguei o leitor e ofereci a Chavela Vargas a cantar “La Llorona”. E as paredes da sala ficaram vermelhas e as pessoas ficaram boémias e o tom de voz ficou mais baixo, mais grave, mais quente, mais sussurrado e combinou-se uma conspiração.

Tuesday, August 23, 2005

Acordar

A primeira pessoa com quem falei ao vivo disse-me «Estás com um ar de merda.»
E não é que estava mesmo?

Já tinha falado com algumas pessoas antes de ouvir este comentário, mas estas não me tinham visto, estávamos à distância de ondas magnéticas. Depois de acordar tinha passado quase três horas sem falar, nem sequer tinha tido vontade de comunicar comigo mesmo. Sentia o corpo cansado e pesado.
A primeira voz que ouvi era rouca como a minha. Era rouca mas conseguia reconhecer nela o calor que me aquecia – porque há calores que sabem sempre bem, quer seja Inverno ou Verão.

Depois disso fiquei sem falar outra vez. Andava de um lado para o outro, na casa, a pensar. Pensava no acordar, no despertar.

Voltei a falar, a abrir a boca, a articular palavras. À mesma distância.
“Meu Deus, como precisava que aqui estivesses.”
Precisei de um cigarro; corri à mochila onda nada encontrei. Pela primeira vez comuniquei comigo, lembrando-me que tinha deixado fumar e como há decisões que não têm ponto de retorno, pensei que talvez tivesse sido uma não muito boa altura para deixar de fumar.

Lembrei-me um filme que me faz sorrir e senti-me conivente com o personagem principal. Porque há uma altura em que ele está vestido, dentro e uma banheira e chega a mulher dele que faz um olhar de espanto. Ele diz
«Estava com muita sede.»
E puxa-a para dentro da banheira, onde se beijam dentro de água.

Apetecia-me estar dentro de água e puxar alguém e partilhar os lábios.

Sunday, August 21, 2005

A identidade do amor

O amor não é simples. E não é linear como o julgamos. Cada dia que passa descubro mais coisas sobre o amor, descubro que a sua complexidade me assusta: sei que não sou simples, bem longe disso, mas tenho alguma dificuldade em compreender como posso comportar em mim um sentimento tão cheio e tão complexo. Os ardis do amor são terrenos que nunca pisei. Porque para mim o amor é simples linear, gosta-se e pronto. Ou pelo menos era.
Deixou o amor de ser simples; quer dizer, retirei-lhe eu o manto da simplicidade com que o tinha coberto. E encontrei um sentimento cheio de meandros, de ruas sem saída: e de ruas largas.
“Que rua tão torta e tão longa, a do amor
Que vento tão forte lá sopra, é o do amor
Por vezes parece uma rua assombrada
Com sombras de bruxa fazendo fada.”
Escreveram uma vez a propósito do amor infantil.

E o amor começa com contornos complexos e depois simplifica com o tempo; simplifica mas não fica simples.
Penso nisto depois de ter visto o “Closer” de Mike Nichols e de ter lido “L'Identité” de Milan Kundera.

As pessoas separam-se e traem-se e voltam a juntar-se porque não são permeáveis à mudança.
(Mudança é uma palavra que aqui figura muito. Este registo é um registo de mudanças e alterações ao longo de um ano na minha vida. E não hesito a usar a palavra mudança.)

As pessoas mudam todos os dias, as pessoas alteram os seus comportamentos a cada segundo que passa, por influência externas ou por motivações internas, facto é que as pessoas mudam. E as relações evoluem com as mudanças, a paixão deixa de ser paixão para ser amor e o amor deixa de ser amor para ser conformismo. Porque as pessoas não cuidam das suas relações, porque mudam e as deixam morrer, não as fazem evoluir.
E no momento em que o amor se transforma em conformismo, a relação é composta por quatro pessoas, duas reais e duas idealizadas. Não acompanhando a mudança do parceiro, cada pessoa idealiza um outro que já não existe, uma pessoa que ficou presa no passado, que não corresponde ao seu real, cuja identidade está deturpada por um amor morto, ideal, parado no tempo. Ou seja, existem duas pessoas reais e dois eus idealizados que não existem. E dá-se a ruptura do amor, porque confrontados com a sua identidade idealizada há quem sucumba ao conformismo e quem se rebele rompa com a sua identidade idealizada, porque estas não coabitam.

As pessoas mudam e não mudam.
O amor nasce e morre, porque as pessoa se aborrecem de si e dos outros, precisam de se reinventar a cada nova relação. Mas no fundo não mudam. As pessoas, hoje em dia, estão podres e mortas, como maçãs demasiado maduras que já caíram ao chão.

Sinto como se estivesse debaixo de água demasiado tempo. Bebi com avidez o ar que me era oferecido pela superfície. Engoli golfadas de oxigénio até me engasgar.

Friday, August 19, 2005

O primeiro fim e o segundo começo

A quarenta e sete quilómetros de casa, fumei o meu último cigarro. Um Camel cravado ao amigo que ia ao meu lado. Já a viagem ia longa e o sol começava a arrefecer, assim como o Verão após o solstício.
Estavam findas mais de sete horas de viagem quando decidi que era altura para deixar de fumar; descobri também que gosto de viajar de carro, longas viagens, apesar de muito cansativas. O acto de deixar de fumar não é isolado, tem mais do que o esquecimento do simples acto de tirar o filtro, a mortalha, algumas gramas de tabaco e enrolar o cigarro. Não é o esquecimento destas acções, que nos últimos anos se tornaram automáticas, que irá mudar algumas coisa. O facto de já ter mudado é que influencia a ausência das acções. Podia continuar a fumar, mas não quero.

Terminou a quarenta e sete quilómetros de casa uma fase da minha vida; uma das mais penosas e turbulentas, embora tenha já tido contornos de paz no fim. Faltava ainda o derradeiro golpe, aquele que me faria ver o que era preciso ser visto.

E visto isto, fumei o último cigarro, esmaguei-o o cinzeiro, uma metáfora inútil no momento em que o fim romanceado e o fim real aconteciam ao mesmo tempo e eram o mesmo tempo e aconteceram.

E rompidos os primeiros quarenta e sete quilómetros do segundo começo, lavei-me.
Um banho longo para lavar e levar os “blues” para bem longe, porque embora eles já tivessem ido, encontraram agora um local onde podem estar, onde quero que estejam, para os lembrar, para os sentir sempre que necessário.
Mas para não me acompanharem sempre.

Sunday, August 14, 2005

Sol de Mel *

Descansado e refastelado, observo as beldades que passam por mim na praia, semi-nuas: olham para mim com incontida inveja. Invejam a garrafa de vodka abaixo do rótulo e a palete de valium 10 pela metade. Acho que o meu sorriso é o mesmo há três horas. Mas nem tudo me corre de feição nestas férias, nem tudo foi tão perfeito como esta praia, esta garrafa, esta palete e este corpo. Este corpo que me atura as más disposições e birras: insurgi-me de forma violenta contra um frasco de mel na geleira, para comer na praia. Capitulei a primeira vez porque não era eu quem o ia comer cheio de areia. Desejava até que uma rajada de vento o enchesse de areia. Sem ninguém reparar pus dentro do frasco o dedo. “nada de especial” disse, tinha sido apanhado. E o pior é que o mel era mesmo bom. Capitulei um segunda, terceira e quarta vezes quando enchi a minha colher e a levei à boca sob um olhar sorridente e um sorriso maroto.

Mas as coisas não aconteceram assim, há que respeitar uma cronologia, há que ser organizado e metódico e matemático. E acima de tudo, é necessário beber mais uns decilitros de vodka e o comprimido branco.

O Luís já foi a Paris.
Ou melhor, o Luís voltou para debaixo da pedrinha da linha de onde saiu.
Tinha chegado há pouco tempo ao parque de campismo onde tinha decidido passar as férias; apenas o tempo de montar a tenda, esticar os cordéis da roupa, abrir os sacos-cama e umas latas quaisquer para consolar o estômago. Isto na costa vicentina, quase, quase no Algarve. Certo; já estava no Algarve, embora não estivesse deliciado por dizer que estava no Algarve. Para todos os efeitos vou dizer que estive na costa alentejana apesar de estar no Algarve. Na costa alentejana, certo?
Estava na escuridão da minha tenda, partilhando uma lata de atum espanhol, num parque na costa alentejana, quando chega o Luís e a sua prole: uma esposa loira oxigenada deslavada, dois Duartes, Bernardos, Rodrigos, Afonsos, ou o que quer que fosse e um sotaque da linha mesmo à mete-nojo.
A caminho da sua tenda familiar, o Luís embateu na nossa corda da roupa, a qual prontamente arrancou com toda a virilidade,
“Mas que é isto? De quem é isto?”
Timidamente respondemos que era nossa.
“É que eu tenho um metro e noventa e isto ia-me cortando a jugular.”
O nosso silêncio era aborrecido, tinham arrancado a nossa corda da roupa.
“Eu ponho isto mais alto e se quiserem eu estendo-vos a roupa, se chegarem à corda.”
Ficámos parvos, sem responder.
No dia seguinte verifiquei que o Luís tinha o mesmo metro e noventa que eu. E eu meço um metro e oitenta e três. Olhava para mim com ar de desdém. Eu rangia os dentes. Havia testosterona no ar.
No outro dia, bem cedo, levantava acampamento. Entre palavras apressadas e ansiosas percebi que lhe tinham fanado a carteira.

A Sra. TVI.
Na minha primeira manhã, não acordei com o sol que despontava no horizonte porque o céu estava cinzento e porque alguém ouvia, um volume bastante alto, o programa matinal da TVI. Discorriam histórias de graça e desgraça, todas sem graça. Fui descobrindo, ao longo do dia e dos dias que era permanente aquele canal, naquela tenda. Com uma excepção: o programa de comedia da SIC segundas à noite. Ouviam-se risos na tenda. A minha inocente companhia perguntou-me se não era aquele programa com o Marco Aurélio.
“Não. É o Marco Horácio.” Fazendo-me de esperto ainda disse “Marco Aurélio era um jogador do Sporting.”
“Mas antes disso foi um imperador Romano.”
Toma que já almoçaste, Miguel Ceia. Não devias ler tanto o Record. Fim de argumentação.
Passei pela tenda e espirrei. Lá de dentro ouvi “Eu disse-te para não andares à chuva Toninho.” Tonhão, o mancebo tinha quase trinta anos.
Visto que a conversa não era comigo continuei o meu caminho. Mas também tinha andado à chuva; pelo sim, pelo não, apressei o passo até à casa de banho.

Cagões e amigos limitados.
Mas não só de televisores a nossa vizinhança se compunha. Havia um casal. Ele fazia o lume e assava o peixe, ela lia e lavava a loiça. Pacífica era a sua existência. Um dia chegaram os amigos com outra tenda. Armou-se o reboliço. Foi-se a minha paz. Melhor forma de colocar estacas, estado do lume, orientação da tenda, tudo servia para os novos amigos opinarem. Mas não foi isso que me deixou arisco que nem gato. A amiga entra na tenda da que lia e lavava a loiça, e toca de ligar o aspirador e aspirar. E nem assim alguma coisa diziam.
Foi vê-los na cafetaria a beber a sua caipirinha e de conversa suave e amena. Mas na beleza e calidez - frio de casaco, diria a minha doce companhia - dessa noite, nada faria esperar o desfecho do dia seguinte. Um carro avariado, amigos desavindos numa discussão sem importância, cheia de palavras bonitas e salamaleques de cerimónia. Arrumou-se a tenda, arranjou-se o carro e foram-se embora os amigos novos.
Ele continua a fazer o lume a assar o peixe e ela continua a ler e a lavar a loiça.

A tournée alentejana da Britney Spears.
Tinha o sossego voltado à nossa área de acampamento quando algo nos fez voltar a cabeça, a mim, à minha cândida companhia e até à Sra. TVI, que virou a sua cabeça cheia de segundos, terceiros e quartos queixos. Um grupo de ruidosos pré-adolescentes ouvia música e instalava-se em altos berros. As duas coisas, a música e a instalação.
Como qualquer grupo grande, os seus gostos eram muitos e variados. Mas em nenhum dos casos bons. Enumerá-los demonstraria que os conheço e isso seria vergonhoso para mim. Era má música que não conheço. Por ali estiveram, fumaram charros, perderam a virgindade, engataram os rapazes da cafetaria. Enfim, um sem fim de rituais muito próprios da idade. Assim vieram, assim foram passados uns dias. E com eles o despertar com Britney Spears, Bon Jovi ou 50 Cent. Felizmente. Yô.

O treinador de bancada ou o Clint Eastwood da praia da Amoreira.
A praia. A doce praia que nos acolhe. A mim, a ela e à vodka e aos comprimidos. Olhámos à volta e a vizinhança parecia boa. (Dou por mim em férias a utilizar demasiado o radical vizinho.) Em breve notámos muitas maquinações até que descortinámos o enredo: ao acompanhar o percurso de uma criança que se queixava ao pai, observámos que esta lutava injustamente contra uma rapariga de oito anos e um manipanço de catorze. Injusto por serem dois e por ele só ter dez anitos. Perto de nós, um rapaz vestido dos pés à cabeça, ténis, calções, camisola, gritava palavras de ordem: “Dá-lhe Marta”, “Força Zé”, “Cuidado”. Era esse da idade do cachopo que sozinho lutava contra a rapariga e o manipanço. Atiravam-no à água e esfregavam-lhe areia molhada nas trombas, puxavam-lhe os calções para baixo, invectivados pelo rapaz que permanecia sentado debaixo do guarda-sol com um olho na bulha e outro no gameboy.
Meti mais um valium no bucho e levantei-me, solidário com os fracos e oprimidos. Dirigi-me ao rapaz que estava sentado, dei-lhe uma latada e enfie-lhe a cabeça na areia: a este acabou-se-lhe o pio. De seguida, agarrei na rapariga de oito anos e atirei-a para o mar alto, ela que puxa-se os calções aos salva-vidas quando a fossem buscar.
Deixei o garoto a lutar com o manipanço e tendo a doce sensação de justiça reposta, voltei à toalha onde o resto da garrafa foi fazer companhia ao solitário comprimido que nadava no meu estômago.

A música e eu.
E nesta hora escura e sombria em que largo o ecrã e vejo as horas. Vejo a mala semi-feita, as garrafas arrumadas e os comprimidos alinhados. Volto a viajar. Sozinho, sem a minha Dulcineia ou Julieta, rumo a norte.
Deixo-a com um pé ao peito. Um dedo partido na praia, numa rocha escondida.


* Por oposição a Lua de Mel ou qualquer astro de Mel.

Thursday, August 04, 2005

Bank Holiday

Grandma has got new dentures
To eat the crust on pizza
Been taken out by her daughter
Because she thought she ought'a
The kids are eating snickers
Because they're so delicious
Then there's sticky fingers
And mother looses her knickers

Bank holiday comes six times a year
Days of enjoyment to which everyone cheers
Bank holiday comes with a six pack of beer
…Then its back to work A.G.A.I.N.

Bar-b-que is cooking
Sausages and chicken
The patio is buzzing
The neighbours they are looking
John is down the fun pub
Drinking lots of lager
Girls and boys are on the same
All the high streets look the same

Bank holiday comes six times a year
Days of enjoyment to which everyone cheers
Bank holiday comes with a six pack of beer
…Then its back to work A.G.A.I.N.

Back to work A.G.A.I.N.

Bank holiday comes six times a year
Days of enjoyment to which everyone cheers
Bank holiday comes with a six pack of beer
…Then its back to work A.G.A.I.N.

Bank holiday


Blur, “Parklife” (1994)

Monday, August 01, 2005

O quebra-nozes quebrado

Há dias em que tudo corre mal, acabando depois por correr tudo bem. Felizmente para mim, ou então ficaria a dormir na rua.

A minha irmã tem a campainha avariada; mas não é a mesma irmã, tenho duas: já foram mais iguais, agora são bem diferentes. Quer dizer, agora que penso nisso sempre foram muito diferentes apesar de serem gémeas. Tem a campainha avariada e não abre a porta a ninguém, porque quando tocam nas outras cinco casas do prédio é a campainha dela que responde.
Tinha lá ido a casa, de chave em punho para conseguir entrar buscar uma mochila, se bem que não interessa muito o que lá eu tinha ido fazer. Apanhei a mochila e fomos aos correios, porque não ia sozinho.
Tirámos a senha e faltavam oito pessoas para sermos nós a expedir o nosso correio. Entra uma senhora com o seu “Mimi”, “Pipi”, “Bóbi”, “Lili”, “Chi xi”, enfim, uma bola branca a que alguns ousam chamar cão. Estávamos entretidos a adivinhar o nome da bicheza quando o nosso número surge no ecrã e nos dirigimos à senhora. Aviámo-nos.
Saímos, a par com a senhora do “Mimi”, “Pipi”, “Bóbi”, “Lili”, “Chi xi”.
Viraram-se para mim
“Lindinho”.
Até pulei, sabendo que a minha companhia não é muito amiga de usar diminutivos amorosos, tal como eu. De qualquer das formas, ficava o elogio e eu feliz. Mas estranhado
“O quê?”
“Era o nome do cão, Lindinho.”
Afinal não fiquei assim tão feliz, nem tão elogiado. Não é mesmo amiga de diminutivos amorosos, tal como eu. Mas talvez soubesse bem, de vez em quando. Muito de vez em quando; muito mesmo, quase a roçar o raramente.

Chegámos a casa e não tínhamos chave, tendo esta ficado em casa da minha irmã. Vamos lá voltar, mas tenho que lhe ligar. Liguei e tinha o telemóvel desligado. Mau. Chegámos e comecei a tocar. Nada. Toquei com mais insistência. Nada. Continuei a tocar, chegando mesmo a ser malcriado com a campainha. E nada. E o telemóvel que devia tocar não tocava, desligado. Desesperei, inventei mil desculpas para ela não estar em casa, para me não atender. Corremos os sítios próximos onde ela pudesse estar. Nada. Voltámos, quase duas horas depois a casa dela, campainha e telemóvel sem ser atendidos. Toquei à vizinha e pedi que me abrisse. Bati à porta dela com punho cerrado e furioso. Estava no sofá a ver um filme a reclamar com quem quer que fosse que estava a tocar à campainha dela. Mesmo que esse quem quer que fosse, fosse eu.

Finalmente em casa; a entrada foi inundada de mochilas e outras coisas que connosco trazíamos. Eram nove e estávamos nestas voltas desde as sete. Corremos para a cozinha e para o frigorífico; uma cesta de nozes e amêndoas chamou-nos à atenção. À primeira amêndoa, o quebra-nozes quebrou-se.
Acabámos os dois no chão da cozinha a rir à gargalhada.
Quando acabou o festim de gargalhadas só restava uma coisa a fazer. Encaixar o quebra-nozes e deixá-lo lá para o próximo.

O diabo saiu à rua

Dia bonito, ontem. Dia de sol quente e ar fresco.

Tinham-me sugerido, antes de ir para o FIAR em Palmela, uma ida à praia. Parecia-me muito bem, ver o mar sentir aquele cheiro e o sabor a sal que se entranha nos lábios, na pele. Saí de Lisboa em direcção à aldeia do Meco, para um meio de tarde na companhia das ondas e da mão que procurava a minha.

Sentados no areal, bem em frente às ondas, com a areia húmida a molhar as calças e o vestido, conversávamos. O vento corria fresco, frio de mais. O que não era mau de todo, muito pelo contrário: ela abraçava-se a mim procurando um pouco de calor, algo reconfortante, uma mescla de segurança e protecção. Estávamos os dois bem conscientes do nosso papel de rapaz e de rapariga; ou de homem e mulher. Pelo menos no que se refere e esse jogo giro da sedução.
E as ondas enviavam-nos o cheiro a mar, a conversa era sussurrada ao ouvido, a praia estava quase vazia. Restávamos nós, a nossa conversa, a brisa fresca do mar, o cheiro das ondas.
O momento estava a ser perfeito, não poderia querer mais da vida do que estar abraçado a quem gosto à beira mar, com as calças cheias de areia, os pés descalços e o vestido um pouco subido.

As horas passavam, dolentes e doces. Também para mim a vida é boa: sorri-me. Acho que até sou simpático, sorrio-lhe de volta.
Levantei-me, o tempo tinha sido traidor. As calças estavam molhadas, o vestido subido também.
Corremos para o carro e para Palmela. Íamo-nos atrasando, filas enormes à nossa frente, filas de biquinis e fatos de banho, toalhas dentro de automóveis. E nós cada vez mais longe no tempo. Chegámos o espectáculo tinha sido atrasado, adiada a última sessão para as nove horas. Afinal “O Natal É Todos Os Dias”. Pelo menos para nós e para o boneco de neve e anjo que representavam.

Levei a mão ao bolso e lembrei-me de uma combinação antiga; tinha a chave do carro dos meus pais. Sorri para dentro e esse sorriso deve ter saído para for aporque me perguntaram
“Porque é que te estás a rir?”
“Tenho a chave da carrinha dos meus pais no bolso,” – que como bons pais, assim como eu sou bom irmão, tinham ido ver a representação da minha irmã – “ e se a mudássemos de lugar ia ser uma partida dos diabos, não achas?”
“Não, acho que ia ser uma partida do diabo.”