Descansado e refastelado, observo as beldades que passam por mim na praia, semi-nuas: olham para mim com incontida inveja. Invejam a garrafa de vodka abaixo do rótulo e a palete de valium 10 pela metade. Acho que o meu sorriso é o mesmo há três horas. Mas nem tudo me corre de feição nestas férias, nem tudo foi tão perfeito como esta praia, esta garrafa, esta palete e este corpo. Este corpo que me atura as más disposições e birras: insurgi-me de forma violenta contra um frasco de mel na geleira, para comer na praia. Capitulei a primeira vez porque não era eu quem o ia comer cheio de areia. Desejava até que uma rajada de vento o enchesse de areia. Sem ninguém reparar pus dentro do frasco o dedo. “nada de especial” disse, tinha sido apanhado. E o pior é que o mel era mesmo bom. Capitulei um segunda, terceira e quarta vezes quando enchi a minha colher e a levei à boca sob um olhar sorridente e um sorriso maroto.
Mas as coisas não aconteceram assim, há que respeitar uma cronologia, há que ser organizado e metódico e matemático. E acima de tudo, é necessário beber mais uns decilitros de vodka e o comprimido branco.
O Luís já foi a Paris.
Ou melhor, o Luís voltou para debaixo da pedrinha da linha de onde saiu.
Tinha chegado há pouco tempo ao parque de campismo onde tinha decidido passar as férias; apenas o tempo de montar a tenda, esticar os cordéis da roupa, abrir os sacos-cama e umas latas quaisquer para consolar o estômago. Isto na costa vicentina, quase, quase no Algarve. Certo; já estava no Algarve, embora não estivesse deliciado por dizer que estava no Algarve. Para todos os efeitos vou dizer que estive na costa alentejana apesar de estar no Algarve. Na costa alentejana, certo?
Estava na escuridão da minha tenda, partilhando uma lata de atum espanhol, num parque na costa alentejana, quando chega o Luís e a sua prole: uma esposa loira oxigenada deslavada, dois Duartes, Bernardos, Rodrigos, Afonsos, ou o que quer que fosse e um sotaque da linha mesmo à mete-nojo.
A caminho da sua tenda familiar, o Luís embateu na nossa corda da roupa, a qual prontamente arrancou com toda a virilidade,
“Mas que é isto? De quem é isto?”
Timidamente respondemos que era nossa.
“É que eu tenho um metro e noventa e isto ia-me cortando a jugular.”
O nosso silêncio era aborrecido, tinham arrancado a nossa corda da roupa.
“Eu ponho isto mais alto e se quiserem eu estendo-vos a roupa, se chegarem à corda.”
Ficámos parvos, sem responder.
No dia seguinte verifiquei que o Luís tinha o mesmo metro e noventa que eu. E eu meço um metro e oitenta e três. Olhava para mim com ar de desdém. Eu rangia os dentes. Havia testosterona no ar.
No outro dia, bem cedo, levantava acampamento. Entre palavras apressadas e ansiosas percebi que lhe tinham fanado a carteira.
A Sra. TVI.
Na minha primeira manhã, não acordei com o sol que despontava no horizonte porque o céu estava cinzento e porque alguém ouvia, um volume bastante alto, o programa matinal da TVI. Discorriam histórias de graça e desgraça, todas sem graça. Fui descobrindo, ao longo do dia e dos dias que era permanente aquele canal, naquela tenda. Com uma excepção: o programa de comedia da SIC segundas à noite. Ouviam-se risos na tenda. A minha inocente companhia perguntou-me se não era aquele programa com o Marco Aurélio.
“Não. É o Marco Horácio.” Fazendo-me de esperto ainda disse “Marco Aurélio era um jogador do Sporting.”
“Mas antes disso foi um imperador Romano.”
Toma que já almoçaste, Miguel Ceia. Não devias ler tanto o Record. Fim de argumentação.
Passei pela tenda e espirrei. Lá de dentro ouvi “Eu disse-te para não andares à chuva Toninho.” Tonhão, o mancebo tinha quase trinta anos.
Visto que a conversa não era comigo continuei o meu caminho. Mas também tinha andado à chuva; pelo sim, pelo não, apressei o passo até à casa de banho.
Cagões e amigos limitados.
Mas não só de televisores a nossa vizinhança se compunha. Havia um casal. Ele fazia o lume e assava o peixe, ela lia e lavava a loiça. Pacífica era a sua existência. Um dia chegaram os amigos com outra tenda. Armou-se o reboliço. Foi-se a minha paz. Melhor forma de colocar estacas, estado do lume, orientação da tenda, tudo servia para os novos amigos opinarem. Mas não foi isso que me deixou arisco que nem gato. A amiga entra na tenda da que lia e lavava a loiça, e toca de ligar o aspirador e aspirar. E nem assim alguma coisa diziam.
Foi vê-los na cafetaria a beber a sua caipirinha e de conversa suave e amena. Mas na beleza e calidez - frio de casaco, diria a minha doce companhia - dessa noite, nada faria esperar o desfecho do dia seguinte. Um carro avariado, amigos desavindos numa discussão sem importância, cheia de palavras bonitas e salamaleques de cerimónia. Arrumou-se a tenda, arranjou-se o carro e foram-se embora os amigos novos.
Ele continua a fazer o lume a assar o peixe e ela continua a ler e a lavar a loiça.
A tournée alentejana da Britney Spears.
Tinha o sossego voltado à nossa área de acampamento quando algo nos fez voltar a cabeça, a mim, à minha cândida companhia e até à Sra. TVI, que virou a sua cabeça cheia de segundos, terceiros e quartos queixos. Um grupo de ruidosos pré-adolescentes ouvia música e instalava-se em altos berros. As duas coisas, a música e a instalação.
Como qualquer grupo grande, os seus gostos eram muitos e variados. Mas em nenhum dos casos bons. Enumerá-los demonstraria que os conheço e isso seria vergonhoso para mim. Era má música que não conheço. Por ali estiveram, fumaram charros, perderam a virgindade, engataram os rapazes da cafetaria. Enfim, um sem fim de rituais muito próprios da idade. Assim vieram, assim foram passados uns dias. E com eles o despertar com Britney Spears, Bon Jovi ou 50 Cent. Felizmente. Yô.
O treinador de bancada ou o Clint Eastwood da praia da Amoreira.
A praia. A doce praia que nos acolhe. A mim, a ela e à vodka e aos comprimidos. Olhámos à volta e a vizinhança parecia boa. (Dou por mim em férias a utilizar demasiado o radical vizinho.) Em breve notámos muitas maquinações até que descortinámos o enredo: ao acompanhar o percurso de uma criança que se queixava ao pai, observámos que esta lutava injustamente contra uma rapariga de oito anos e um manipanço de catorze. Injusto por serem dois e por ele só ter dez anitos. Perto de nós, um rapaz vestido dos pés à cabeça, ténis, calções, camisola, gritava palavras de ordem: “Dá-lhe Marta”, “Força Zé”, “Cuidado”. Era esse da idade do cachopo que sozinho lutava contra a rapariga e o manipanço. Atiravam-no à água e esfregavam-lhe areia molhada nas trombas, puxavam-lhe os calções para baixo, invectivados pelo rapaz que permanecia sentado debaixo do guarda-sol com um olho na bulha e outro no gameboy.
Meti mais um valium no bucho e levantei-me, solidário com os fracos e oprimidos. Dirigi-me ao rapaz que estava sentado, dei-lhe uma latada e enfie-lhe a cabeça na areia: a este acabou-se-lhe o pio. De seguida, agarrei na rapariga de oito anos e atirei-a para o mar alto, ela que puxa-se os calções aos salva-vidas quando a fossem buscar.
Deixei o garoto a lutar com o manipanço e tendo a doce sensação de justiça reposta, voltei à toalha onde o resto da garrafa foi fazer companhia ao solitário comprimido que nadava no meu estômago.
A música e eu.
E nesta hora escura e sombria em que largo o ecrã e vejo as horas. Vejo a mala semi-feita, as garrafas arrumadas e os comprimidos alinhados. Volto a viajar. Sozinho, sem a minha Dulcineia ou Julieta, rumo a norte.
Deixo-a com um pé ao peito. Um dedo partido na praia, numa rocha escondida.
* Por oposição a Lua de Mel ou qualquer astro de Mel.