Monday, May 30, 2005

O Calor

Era noite-meia e estava frio. Ontem. Vinha da casa de um amigo a subir uma avenida. Dentro de casa estava um calor ansioso, um calor que entrava dentro de nós, que nos entorpecia movimentos e pensamentos. Um calor que nos derretia a vontade. Na rua estava frio.
Quando se deu o choque térmico eu tinha um casaco vestido. Estava daquelas noites que parece que está frio, mas mal vestimos um abafo ou qualquer peça de roupa semelhante, voltamos a ter em nós o calor. O suor espalha-se pelo corpo, tornando-nos dolentes e pegajosos. Assim andei vinte minutos e quando cheguei à minha casa a roupa colava-se ao corpo.

Estou cansado. Ontem à noite sonhei muito. Sonhei com os meus amigos do secundário, com um amigo que está na Turquia, com outro que há muito já não falo, com aquele que já nada tenho a dizer; também estavam as amigas desse tempo, as namoradas dos amigos e todos esses efémeros parentescos: pessoas que emudeceram para mim, pessoas que olham para mim com desdém superior, pessoas que tenho pena de já não me serem próximas. Haverá alguma despedida próxima?
Será uma despedida condigna, cada um com sua consorte a lembrar os velhos tempos, as coisas que se fizeram, os planos para o futuro, os diferentes rumos. Lembro-me de alguém de gravata e fato escuro.

Hoje e ontem estive a arrumar o meu quarto. Vou deixa-lo dentro de trinta dias. Vou ser licenciado, mudar de cidade, arranjar um trabalho e continuar a estudar.
Dentro de trinta dias só já os amigos me ligam a Évora. Dentro de trinta dias vou estar aterrorizado.
Dentro de trinta dias penso nisso.

Friday, May 27, 2005

Irritações Temporárias

É engraçado ver como uma única palavra consegue sumarizar todos os nossos sentimentos: irritação. Tenho andado a sentir-me irritado com tudo, comigo, com as pessoas, com a minha situação actual.
Mas parer entender isto é também necessário dizer em voz alta a palavra irritado; a sequência de «rrrr» parece que deixa na boca um sabor a raiva, uma espécie de vibrato que faz com que estejamos ainda mais chateados; não é só o significado óbvio que ligamos à palavra, mas também a forma como a dizemos, como a pronunciamos e deixamos fluir na nossa língua que lhe dá essa carga de aborrecimento, impaciência e irritação.

Há-de passar a irritação. Não é especialmente dirigida a alguém, muito pelo contrário. Irritam-me os comportamentos, as infantilizações constantes. Mas terei mudado assim tanto para que isto me faça diferença? Não sei ao certo, mas já me disseram que me não reconhecem. Acredito que isso seja bom, pois não é muito bom ficar parado no tempo.

Pende-me a cabeça para a frente, sinto o meu cérebro empastado. Alturas houve em que achei isto bom, mas não consigo deixar de pensar no tempo em que tudo isto terminará. Falta pouco, tão pouco para terminar esta fase.
Felizmente.

Saturday, May 21, 2005

As quatro papoilas que vejo da minha janela

Hoje reparei em quatro papoilas que são agitadas pelo vento calmo que se atravessa nas traseiras do meu prédio. Hoje decidi que também ia gravar para mim a banda sonora do "Ocean's Eleven". Contrariamente ao que ontem se passava, hoje o dia levantou um céu cinzento que oculta o sol; de quando em vez as nuvens deixam-no dar uma espreitadela, só para confirmar que não houve gotejamento algum, que não houve lágrimas olímpicas.

Ontem decidi que não me apetecia sair. Fiquei em casa. Arrumei caixas, arrumei pensamentos. Pensei que devia começar por arrumar os cds, depois os pequenos objectos decorativos que nos são oferecidos ou que se trazem de viagens daqui e dali. Ou então aqueles que têm algum significado sentimental e que não queremos deitar fora. Quer dizer, eu ando a guardar a lã do laço de um embrulho que me deram no natal.
Ontem terminei também os meu trabalho como educador. Passei por ali e pronto. Deixo saudades, mas não sei se as vou sentir. Com este final de trabalho, encerro mais uma fase da minha vida; bem, não é certo que seja uma fase, quase como se estivesse a começar a escrever o último da capítulo de um livro. Depois, mais livros virão.

Passa mais uma rajada de vento e as minhas papoilas abanam-se, abanicam-se ao sabor da melodia cálida que o vento traz no ventre que roça nas sua vermelhidão. Levantei agora um pouco mais a cabeça e descobri uma nova colónia de papoilas, dezassete, estas últimas, separadas por um muro. Já descobri porque é que gosto tanto só daquelas quatro. Porque são as desgarradas, porque estão do lado de fora, porque não foram com a maré. Optaram por seguir outro caminho, e agora são roçadas pelo ventre cálido do vento; as outras, essas ficam imóveis na sua invejosa altivez.

Há umas noites atrás, já semi-embriagado pelo calor, pela primavera, pelo álcool, olhava fixamente para uma fotografia exposta na parede de um bar. Olhava para a Manuela Azevedo. Mas ela estava de lado, não reparou bem que eu estava a olhar para ela. Estava sentada numa cadeira branca, com os cotovelos apoiados numa mesa à sua frente. E não olhava para mim; comecei a desligar-me das conversas em redor, queria mesmo que ela reparasse que estava olhar para ela, que a estava a observar de uma forma incomodativa para todos; de certeza que não se importou muito, afinal era uma fotografia. Não resisti a dizer "Pst, vamos embora daqui?" "Está bem, mas depois" respondeu-me ela.
Eram três da manhã na Sé e eu fiquei à espera, porque nunca chegou a vir.

Ontem decidi não sair e não sai. As quatro papoilas que vejo da minha janela decidiram que eram desgarradas e foram-no.

Friday, May 20, 2005

Fotografias de Rua

"A Vingança das All-Star"
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Évora, 20 de Maio de 2005


"Monkey Gone To Heaven"
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Lisboa, 03 de Abril de 2005


"O Exército Vermelho"
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Évora, Fevereiro de 2005

Sunday, May 15, 2005

Madrugada Sentimental

Não quero ver as horas, sei que é cedo. Merda, é demasiado cedo. Dorme que consegues, força-te a dormir. Agora não te podes mexer até a dormeceres. Nem um dedo.

É mesmo cedo. São nove horas da manhã. Dormi seis horas, melhor que ontem, acordei às sete, dormi menos uma hora. E acordei igualmente cansado. Nessa altura já o cérebro manda e comanda: fazem-se listas de afazeres, de telefonemas, pessoas, recados, gravações, escritas. Listagem cerebral precisa, já que a caneta e o papel disso não se encarregaram. O cérebro desperto atenta à inèrcia do corpo que se não mexe: um funcionário público descontente e incompetente. Ainda é cedo, não chegou a hora de picar o ponto, faltam quinze minutos: já me levanto, diz o corpo, já vou fazer café para bebermos junto ao computador.

Hoje de manhã pousei a caneta e rasguei a lista. Pensei que hoje não faria nada do que estada listado, planeado, planificado, tudo pronto a ser avaliado caso fosse concretizado. Hoje tiveram folga, corpo e cérebro. Apesar de já acordado não me mexi da cama, nem tão pouco deixei que o cérebro fervilhasse de ideias que obriga o corpo a escrever no papel.

Encolhido na cama quente, entre lençóis e cobertores, dediquei a manhã a quem mais quero. Discorri com a doçura primaveril, cada momento passado, cada risada, cada toque de lábios. Ter-me-ei entregue ao corpo com o corpo. Ter-me-ei entregue ao amor com tudo o que preenche as minhas entranhas, acho que é assim que o amor deve ser.
Falei-lhe ao ouvido, cheirei-lhe os lóbulos, passeei no corpo, fizemos amor. Isto no momento em que o cérebro dormitava, o corpo languescia e eu pensava em ti.
Na minha madrugada, às nove horas da manhã de hoje.

Saturday, May 14, 2005

Óculos de Sol Sinápticos

Hoje o dia acordou de sol; ficou tímido lá para meio da manhã e escondeu-se atrás das nuvens.
Hoje a minha internet está nmuito rápida; já saquei seis álbuns novos.

Sinto que ainda não acordei bem, que ainda me encontro no dia de ontem. Tenho tido os mesmo problemas de sono e sonhos, someço a perceber a sensação de quem me dizia que acordava mais cansada do que quando se deitava. Hoje sinto-me assim, totalmente subtraído de mim; a soma foi para os sonhos que tomaram conta da noite que seria de descanso.

A música tem-me ajudado, como sempre a manter esta disposição estranha com que fico nestes dias. Duas bandas sonoras, fenomenalmente organizadas e inteligentemente colocadas no "Repeat All" do iTunes. A do "Garden State" e a do "Before Sunset /Before Sunrise". Parece que este fim de semana vai tudo dar à vaca fria, mas ainda não me recompus bem daquilo que vi, sozinho no quarto, quarta-feira.

A disposição, a ausência de sono, o excesso de sonhos, anda tudo ligado: ao filme, ao fim de uma fase de quatro anos de inutilidade absoluta. Vejo o fim e um novo início. Abri a janela da sala de onde escrevo e à minha frente há um pequeno olival, onde pássaros chilreiam.
Levei um pontapé e estou a dar uma cambalhota, quase como se estivesse dentro de um carro a capotar e não soubesse quando irá ele parar. Sei que quando sair vou ficar bem, estou bem; isso eu sei, mas o capotanço é tão longo, não haverá forma de o travar? Nos solavancos não acerto com os pedais nem com o travão de mão, tenho apenas que esperar. Esperar para sair pela janela do lado de lá.

De repente dei por mim a ficar nostálgico; as matreirices hormonais primaveris funcionam hoje de forma perversa, ao invés de darem para a alegria desmedida, dão para uma tristeza infindável, uma saudade que me aperta o peito por estar apartado de quem mais tenho saudades. E tudo isto tão junto, com o refrão do "The Human Pump" do Harald Waiglein.


Sinto que tenho estampado aquele sorriso de tristeza de tempos passados.

Quando ela disse...

Já em muito locais li críticas a este filme, no entanto não resisto a falar mais um pouco sobre ele. Não por ser um filme bonito, ou especialmente bem realizado ou bem escrito, mas por ser um filme que atravessou a minha adolescência toda. "Before Sunset". Naturalmente este não foi o filme que a atravessou, foi a primeira parte "Before Sunrise".
Vi a primeira parte na vulnerável idade de quinze anos. Fiquei fascinado e muito atraído por ambas as personagens; recriavam aquilo que ambicionava ser, as ideias que gostaria de poder chamar minhas, o modo de raciocínio e ideias tolas que gostaria um dia de ter; enfim, coisas de quem tem quinze anos. Passados nove anos, Céline e Jesse encontram-se em Paris. Passados quase oito anos, reencontro-me com o filme deitado na minha cama em Évora. Ele é o escritor que eu espero ser, ela é a desancantada com a vida e com o mundo. Vejo no crescimento deles o meu também, este hiato temporal que existe, estes anos de crescimento. Simplesmente eles tinham vinte e três e agora trinta e dois e eu tinha quinze e agora quase vinte e três. Há também aqui uma grande diferença.

O filme funcionou para mim quase como uma viagem ao fututro onde me vejo a mim como escritor; não coleccionei nenhum amor semelhante ao longo dos anos. Suponho que essa parte a tenho melhor resolvida que eles, pelo menos aos vinte e quase três. Não interessa muito para o caso.
Acontece que se sabe o que se passou no encontro passados seis meses na gare fria de Viena, sabe-se que ambos ficaram eternamente apaixonados um pelo outro. Para mim normal, eu acredito nestas coisas, sério que acredito. No final ela canta-lhe uma valsa que compôs, doce, simples. Sempre ouvi dizer "small is beautiful".

Ele achega-se ao sistema de stereo dela, põe um disco. Ela fala da artista que já morreu. E como já não se preocupasse ela disse, dançando ao som do jazz, balanceando as ancas:

Céline - Baby, you'll never catch that plain...
Jesse - I Know...

THE END

Sunday, May 08, 2005

Vodka, Vinho e Aspirinas

Duas horas e nove minutos, três aspirinas, meio litro de café com leite e uma fatia de pão com manteiga mais tarde, volto aqui, com um olho já aberto e outro ainda fechado.
Causas de tamanha desgraça; duas garrafas de vinho a dividir por três pessoas, temperada com uma salpicos de vodka aqui e ali. Caramba, acho que ainda não acabei com a dose de aspirinas; não tarda, já marchou a palete toda e eu nem sequer sei como, nem dou fé disso.

Começou com um jantar em casa de uns amigos dos meus pais, não que estivesse muito encantado de ir, mas gosto muito do D. e da I., não se diz que não assim a pessoas de quem nós gostamos. Estava lá o cão deles que aproveitou o facto de eu estar de calções para me dar uma trinca nos calcanhares. Mal sabia eu que essa trinca se ia propagar até à cabeça doze horas mais tarde. O problema é que agora é repetidamente, uma trinca cerebral no "Repeat 1".
Fugi o mais rápido que soube, para uma quinta na encosta da serra onde fui encontrar alguns amigos a ver futebol. Não sei como, o jogo acabou, a equipa por quem todos torcíamos perdeu; acabámos três dos nove a tocar guitarra, bateria e cantar e beber: deixaram por lá duas garrafas de vinho, que fomos bebendo. Quando as coisas acalmavam, golinhos de vodka sobejada da passagem de ano para aquecer. Só dei conta do que se passava quando trôpego, tentei levar a guitarra para o carro.

Ainda hoje não tive ensejo de experimentar a minha voz, mas também tenho medo de abrir a boca, não vá de lá sair algo indesejável. Sei que me lembro de andar aos saltos a cantar o "Swallowed" dos Bush, o "Cão Muito Mau" dos Boite Zuleika entre outros hits.
Pior, a ver o Bon Chic na TVI com músicas da Madonna, a minha infância musical revisitada num programa pimba de sábado à noite. Acho que não quero continuar esta autoscopia para não descobrir mais sobre mim, pelo menos em estado embriagado.


Não me lembro muito bem de chegar a casa, mas trouxe o carro.
Trouxe!? Bem, isso passa com outra aspirina.

Música para Ressacados e Apaixonados

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Nancy Sinatra - Boots (1966)


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The Concretes - The Concretes (2004)

Saturday, May 07, 2005

Soda Cáustica e Soluções Caóticas

Bem, há probelmas que eu tive mesmo que resolver sozinho, já que Deus não me ajudou. Por questões de tempo não fui a Fátima, e em abono da verdade também acho que não valeria a pena. Ora, como desatar novelos se tenho as unhas roídas? Como desentupir canos se não tenho daqueles desentupidores com cabo de madeira e aquela-espécie-de-cilindro-de-borracha-que traz-de-volta-os-cabelos-dos-ralos?
Como o título diz, "Soda Cáustica", mas a verdade é que isso queima tudo e pode até queimar coisas das quais eu não quero abrir mão. Optei por resolver da forma mais difícil, da mais dolorosa, no entanto, mais saudável: pegar numa garra de aço e revolver as minhas entranhas, perceber o que iria ser ou que era suposto ser. E assumi-o, sou-o. Mas esta solução não foi caótica, há-de o ser, pois se para alguns era por demais óbvio - o resultado - para outros não, porque continuam completamente fora.

Em vez de ter desfeito os nós, apenas começou o meu desnovelo mental.
Não consigo fazê-lo rápido por várias razões: um, é impossível assumir o que somos tão rapidamente; dois, ainda tenho que esperar que as unhas cresçam para começar a desnovelar.

Friday, May 06, 2005

Indie Is The New Cool

Nunca fui muito à bola com tribos sociais; acho demasiado redutor, demasiado palas-de-burros-para-gente-que-tem-necessidade-de-afirmação-e-não-sabe-o-quê. Quase como as correntes literárias em que se tem que seguir determinados trâmites ou então já não fazemos parte dessa corrente.
O título deste post podia ser o de um álbum dos Kings Of Convenience, em vez de "Quiet Is The New Loud", "Indie Is The New Cool", foi por aí que me lembrei.
Há uma nova corrente, talvez até tribo social, que é ser Indie, gostar de música Indie, ver cinema Indie, vestir roupas Indie, ter cortes de cabelo Indie, em suma, ser Indie. Mas o que é ser Indie? Quais os trâmites para sermos considerados Indie?

Hum, acho que vamos começar pela etimologia, Indie: diminutivo de Independente. Pelo menos no meu entendimento de pessoa especial. (Sim, eu sou um homem especial, eu e o Mourinho.)
Ora, todas as pessoas que se assumem, directa ou indirectamente Indie não são independentes. Dependem do dinheiro dos pais ou do afecto da namorada/o, nem sequer sabem o que é a vida; julgam que a vida de universitários que levam é semelhante à de trabalhador, ná ná ná ná ná. Sim, porque só se assume Indie quem ainda é universitário com tendências de secundário residuais. A partir dos trinta, já toda a gente se está a cagar para isso.

Naturalmente eu sou Indie; escrevo de uma forma intelectual, com piadas inteligentes, ouço música Indie (como aliás está no meu profile), a minha escrita está cheia de estrangeirismos; mas não uns quaisquer, aqueles que são cool, como este último. E visto-me à Indie - o que quer que isso seja - mas acho que andar com as calças rotas é um ponto a meu favor. Só o cabelo é que destoa, é uma amiga minha que mo corta.

Está na moda ser Indie, quem o não é, é porque não é cool, porque não sabe onde estão as coisas interessantes, é retro, old-fashioned, não conseguiu acompanhar o comboio. É teres internet e não teres um blog. Eu tenho, eu sou Indie.
Além de tudo isto temos que ir contra a corrente, ter um emprego cool, aliás, Indie, de preferência fotógrafo, tradutor, crítico, escritor, cineasta, designer, actor, profissões liberais, que tenham a ver com criatividade. Mas há uma variante muito boa que é: quem não é fotógrafo tira fotos muito boas, isso é imperativo.

Se alguém preenche a maioria destes items, associe-se, pois faz parte de mais uma moda portuguesa que é ser Indie. E isso é cool apenas por uma estação, não se apegue demasiado à sua nova pele, está avisado.
Tendências para a próxima estação, ser Retro-Futurista.

Sunday, May 01, 2005

Deus é a nossa mulher a dias

O cigarro que me entrou nos pulmões, o ar quente e adulterado, ampliou o negrume que sobre a minha cabeça já existia. Saí da varanda a medo, da pequena tontura que sucedeu ao primeiro bafo. Consegui acabar tudo e deixei-me cair na cama a arfar, a recuperar do choque que me teria feito cair de uma altura de três andares para as pernas da porta da garagem.*

Ontem carreguei a cruz de nada ter feito; a total e absoluta inêrcia de quem fica em casa a não ver o sol. Apenas uma vez, quando fui fumar um cigarro à varanda do meu quarto.
Estiquei pelo corredor de dez metros toda a minha languidez e lassidão, o atrito trabalhador, o semi-sono da inutilidade. Pesou-me a inconsciência de bom cristão, o entregar-me aos mais pequenos afazeres, ao pecado da preguiça; poderia, na meia luz em que deixei a casa, dissolver-me nos lençóis da cama, nas paredes da cozinha, nos pratos do armário. Podia ter ficado nu, que não faria diferença alguma.
Não conversei com ninguém, apenas abri a boca para comer duas torradas e uma maçã. Algures no computador ainda conversei, sem abrir a boca, apenas um frenético gesticular de dedos de volta do teclado, a tentar acompanhar a velocidade do pensamento Velocidade que, por vezes, nem mesmo a boca consegue acompanhar.

*Na altura em que o fumo subia rapidamente até às minhas sinapses, Deus entrou. Trazia um lenço na cabeça, uma vassoura e um aspirador de água que tinha comprado na TV-Shop. Andou às turras com os meus novelos. Para desfazer uns quantos simples embrulhou uns que já por si eram complicados. Mas limpou-me as janelas, afastou o nevoeiro com o seu aspirador. Grandessíssimo cabrão, não queria que lá andasses a mexer:
- Estúpida mulher a dias, vai-te embora fazer aquilo que fazes bem, o que quer que isso seja.
- Oh, desculpa, mas se fores a Fátima de certeza que a Nossa Senhora te faz um arranjinho.
A minha vontade era de o mandar à merda, mas tendo em conta que era com Deus que estava a falar, achei melhor ser prudente.
E ainda tive que pagar a limpeza que me fodeu, com gorjeta. Ele há dias em que nem sequer um olho devia abrir.