Sunday, October 30, 2005

Sótão virado casa

Acho que com o Outono me deixo sempre tomar por uma espécie de sentimento de nostalgia; não sei, encontro um enorme prazer romântico nas folhas que caem, no barulho da chuva. Mas não é só de Outonos molhados que gosto, gosto daqueles Outonos secos e ventosos, em que as folhas de plátano se enchem as ruas, deixando uma pequena camada, a qual nós pisamos. Deixamos de andar em cima da calçada, dos passeios, mas sim em cima de folhas de plátanos, quais pétalas de rosa, se realeza fôssemos. Mas não somos.
Hoje caminhei na minha rua, numa rua em que as árvores de abrunhos se enchem de flores brancas com a Primavera, nos sacos transparentes que nós enchíamos de abrunhos que serviam de lanche nos intervalos da escola primária. Suponho que o prazer romântico que encontro em tudo isto, é apenas o mesmo prazer que encontrava numa infância despreocupada.

Olho para a parede em frente ao meu computador e vejo uma gota de humidade que desce de uma mancha escura do tecto. A gota de humidade desce, vagarosamente, como se nada mais tivesse que fazer, a não ser descer uma parede com pouco mais de dois metros. Desce timidamente a parede, como se estivesse a tentar provar a segurança de cada reentrância, como uma montanha que já se escalou e se está a descer.

Andava a magicar o porquê destas tantas reminiscências infantis; a casa onde vivi, durante os primeiros dezanove anos da minha vida vai ser vendida. Sempre achei um pouco ridículos os filmes americanos que falavam de quando as pessoas tinham que se separar de um carro ou de uma casa: para mim não faz sentido que uma pessoa se apegue tanto a um bem material, quanto mais a um imóvel. Achava que aqueles dilemas existências eram algo que me ultrapassava, honestamente, não conseguia compreender.
Acontece que essa casa não é uma casa qualquer: é um sótão. Vivi durante dezanove anos num sótão adaptado a casa. Tinha o telhado a descer e em algumas partes da casa tínhamos que andar de cócoras.
Não era, de longe, a casa perfeita. Mas a verdade é que nela senti sempre algumas raízes, algum sítio para onde sabia que era bom voltar, nem que fosse para os tectos esconsos onde passava o tempo a dar cabeçadas. A casa está vazia e de quando em vez encontro uma desculpa válida para ir àquele sótão virado em segundo esquerdo, para cheirar a casa, para cheirar o chão de cortiça envernizada. Tão fresco no verão e acolhedor no Inverno, contrariando o resto de casa. Lembro-me dos Verões quentes, de dormirmos todos no terraço, as mangueiradas de água fria, fria que o meu pai nos dava, a mim e às minhas irmãs no pico do Verão.

Assim como a infância terminou anos antes, anos mais tarde a casa também terminou. Os quartos pequenos, o tecto esconso, as cabeçadas, o chão e o terraço, a mangueira de água fria, a infância.
[Sorriso nostálgico, não triste.]

Thursday, October 27, 2005

O impermeável verde

Saí de casa para chuva com o meu impermeável verde. Deixei-me ficar parado no largo em frente à minha casa. Sentia as pequenas gotas de chuva a fazer barulho sobre a capa que me cobria. Deixei-me estar com um sorriso enorme. Gosto da sensação de estar à chuva sem me molhar, a ouvir as gotas que caem, numa cadência aleatória. Puxei, com força, para dentro dos pulmões, o ar fresco da rua, o ar húmido e chuvado.

Gosto deste largo, sempre gostei. Acho que faço parte daquela última geração a que ainda foi permitido brincar nos largos, jogar futebol, jogar às escondidas nas noites de Verão, andar de bicicleta, jogar ao desequilibra ou aos dez pés. No meio de tudo isto, dou por mim, com a chuva a fazer barulho em cima do meu impermeável verde, no meio daqueles jogos todos; provavelmente acho que tinha dissuadido aquele grande grupo de colocar os limões dentro do marco do correio; mal sabíamos nós qual o castigo que teríamos, que seria um daqueles castigos que iriam servir de exemplo de como os pais podiam ser maus. Proibidos de ir às festas da cidade nos quatro dias que elas duravam. Isto tudo mo mesmo largo.

Olho à volta. Como é que vieram aqui parar tantos carros? Sei que a escola primária é já ali, mas ainda não são horas da saída. Lembro-me de ver o largo sem carros, lembro-me achar que estava excepcionalmente vazio. Nesse dia fui buscar a minha bola de futebol e andei a atirar contra todos os muros que podia, nesse dia não havia limites, não havia carros que pudessem estragar a minha brincadeira. Mas também não havia ninguém para brincar. E nos dias em que éramos muitos, nos dias em que havia duas completas equipas de futebol, o largo inundava-se de carros. Acho que nessa altura já provávamos as amarguras da lei de Murphy.

O vento puxou para trás o capuz do meu impermeável verde. A partir de uma determinada altura deixei de usar verde, especialmente em camisolas, camisas e casacos. Para uma ocasião especial vesti umas calças castanhas escuras, uma camisa e uma camisola verde. Quando cheguei ao local disseram-me: «Então, vens vestido de árvore?» Bem, desde essa altura nunca mais fui muito conivente com o verde, com medo que numa distracção me vestisse de novo de árvore.
Mas o vento que me puxou o capuz para trás continua a soprar com força e deixo que me sopre os cabelos, me passe pelas orelhas. Consigo senti-lo no couro cabeludo. Não faço força para puxar o capuz para trás, deixo que o vento me feche os olhos e a chuva que ficou miudinha me encha os óculos de pequenas pingas.

Volto a puxar o capuz para cima, aperto um pouco mais o impermeável verde, para me proteger da chuva, pouco me importando se tenho umas calças castanhas ou não. Olho em volta e vejo-me a mim com várias idades, as minhas irmãs, os limões que primeiro roubámos e que depois deitámos no marco do correio da esquina.
A chuva na cara desperta-me. Passaram apenas alguns segundos desde que saí do prédio e fiquei a olhar para o largo e para os carros. Agora tenho que ir fazer aquilo que me levou a sair de casa neste dia de chuva.

Monday, October 24, 2005

Castanhas e Raízes

Choveu a chuva que tinha que chover: uma chuva pequena e contínua, uma chuva que não magoa o campo, uma chuva que pousa suavemente nas superfícies. Choveu durante dois dias seguidos. O ar encheu-se de cheiro a Outono e comecei a sentir falta das castanhas assadas, do fumo que se espalha. Desci ao Rossio para comprar uma dúzia. (Como agora poderia falar de tantas cidades, de tantas cidades têm um Rossio e um vendedor de castanhas assadas no Rossio.) A minha cidade tem um Rossio e um vendedor de castanhas assadas no Rossio.

Não sou, de forma alguma, personagem conhecido na minha terra natal; sou mais um anónimo, que tanto podia ser um estudante do Instituto Politécnico como um filho da terra.
Gosto que os regressos a um sítio que me habituei a chamar casa sejam anónimos, que o contacto seja muito limitado, apenas com a família e aqueles amigos mais chegados. Porque deste sítio que me habituei a chamar casa, arranquei as raízes há muito; mesmo no tempo em que mais andava perdido, não consegui descortinar um norte e um ponto de origem. As raízes que me prendem à terra, que me fazem regressar são afectuosas, emocionais. Têm a ver com pessoas, não com um sentimento de pertença.

Tinha já na mão o meu embrulho de páginas amarelas com doze castanhas e mais algumas porque «o menino é muito simpático e eu conheci o seu avôzinho». Não é assim que se passa, ninguém sabe de quem eu sou neto, levo as doze castanhas contadas e não me importo muito com isso. Sei que dessas todas vou comer apenas sete ou oito, que as outras estão podres. Retoma a chuva a sua dolente queda, o papel que embrulha as castanhas passa tinta para as minhas mãos. Resguardo-me na porta grande do Palácio da Póvoa e fico a olhar as pessoas, o quiosque, os carros.

Sempre achei que ser alentejano tinha muito a ver com o facto de se ser triste. A solidão e calor do Alentejo, as casas no meio de nada impelem a sentimentos de ausência e tristeza, a uma religiosidade há muito esquecida. Continuo a procurar a minhas raízes e continuo sem as conseguir encontrar. Suponho que todos necessitamos que um lugar onde podemos voltar, ao qual nos sentimos em casa. E se nos sentirmos bem no mundo, sem lugar definido?
Sinto afinidades com esta terra triste, com esta terra queimada e esquecida. Sinto que pertenço tanto a este povo sofrido, como a outro mais audaz e aventureiro; sinto esta religiosidade pacífica das horas mortas do fim da tarde, a espantar a solidão; sinto o hedonismo citadino. Sinto que as minhas raízes não passam de um nome que já esqueci.

A chuva parou. As castanhas ficaram frias e molhadas. Começo o meu regresso a casa, à casa dos meus pais. Por mim passam alguns estudantes do liceu que experimentam os primeiros cigarros e as primeiras línguas. Rio-me para dentro ao pensar que também já tinha fumado às escondidas; depois fumei às claras e por fim deixei de fumar.
Descobri que o amor não se descobre na adolescência, que nessa idade é um conceito demasiado vago para se levar a sério. Mas descobri que quando se descobre, percebemos, sentimos os coração acelerar sem porquê, sentimos que não encontrámos alguém igual a nós, mas sim alguém que nos completa. Descobrimos que o valor do amor está na partilha, no carinho. Que o valor está em ser a dois, de igual modo, de igual forma, de igual tamanho, enorme.

Saturday, October 22, 2005

Pele

Olho a pele enrugada das minhas mãos, olho-as como se pela primeira vez estivesse a contemplar com a devida atenção as cicatrizes coleccionadas ao longo dos anos. Olho as pequenas manchas que vão ficando, substituindo a pele que outrora foi rasgada.
Desço a correr os poucos degraus que separam a minha porta da rua, espanta-me que consiga correr assim, com os pés descalços. Sinto a chuva que cai sem piedade, a pouca chuva que vai caindo ininterruptamente a pousar nos meus ombros, no meu cabelo, vai-se a cumulando na minha pele, para descer pelos caminhos insondáveis da minha pele, escorre até aos pés; desce a chuva pela irregularidade da pele que tantas vezes pareceu perfeita, imaculada. Fecho os olhos, deixo cair das pestanas a chuva que se foi acumulando. Fecho os olhos, não quero ver o cinzento da rua, o preto do alcatrão quente que me aquece os pés. A chuva continua a cair, na sua dolência leve.

O suor é salgado; é salgado como fazer amor depois de nadar no mar. Quando se lambe a pele sente-se cada rugosidade, sente-se o sabor da pessoa, assim como quando duas línguas se tocam num serpentear de amor. Os lábios que se esmagam uns nos outros, enchendo de saliva a pele circundante à boca. O suor que escorre dos braços, da fronte, a pingar para cima do corpo que aceita isso com o peito aberto.
A pele dos seios, que sobem e descem a cada arquejar de desejo, a pele macia do amamentar materno e amoroso e erótico. As mãos a segurarem a nuca, a não libertar a cabeça do beijo. As pontas dos dedos a roçarem o pescoço, a pele a trocar-se com a pele, as barrigas coladas com o suor salgado do amor, com o desejo frenético da ansiedade.
Os corpos colados pela pele nas noites mal dormidas. Os seios esmagados pelo rosto, a carícia das mãos pelo cabelo, os murmúrios da noite.

A pele azulada da noite, manto velúdico que esconde os amantes, que os cobre com os ardis do amor.

Thursday, October 20, 2005

Indigente

Na minha última refeição antes de regressar a casa, senti bem perto de mim, à distância de uma gemido, de um suspiro, a dor dos indigentes. Na cama em frente à minha, dormia um homem cujas pernas estavam assoladas por uma devastador e dolorosa doença; cheirava a carne podre, as pernas, ambas, dos joelhos para baixo eram uma única chaga. Um homem, conhecido da zona, que em tempos se elevava nos seus cento e noventa centímetros, um autêntico terror sempre que tinha que comprar sapatos; isto porque já tem à volta de sessenta anos.

Partilhávamos a mesa da enfermaria, ele na cadeira de rodas, eu ajeitando-me o melhor que podia; choramingava com dores, “Se fosse no quinto ou sexto piso, abria uma janela e atirava-me”, estávamos no terceiro
Nunca fui muito adepto de suicídios, (bem, há dias uma amiga minha recordou-me a imbecil idade adolescente em que dizia que me queria suicidar aos quarenta, mas na altura ouvia muito Joy Division, por isso é desculpável) e repliquei ao senhor «Tenha calma, vai ver que tudo se resolve. Não é preciso estar aí com ideias parvas. Depois de almoço experimente a descansar.»
“O único descanso que me resta é a cova.” Descanso era coisa que o senhor não tinha: acordava a meio da noite, acendia a luz cimeira à sua cama, número três numa enfermaria de seis, e sentava-se na borda da cama, com as pernas pendentes para o chão, sem nunca lhe tocar. Dormitava, dobrado sobre ele próprio, num precário equilíbrio entre a cama e o chão. Uma noite, terminou no chão, sucumbindo ao cansaço, depois de inúmeras noites em semi-vigília.
Na tarde em que comigo partilhou as suas suicidas ideias, sentia as pernas mais doloridas, que o queimavam por dentro, os ossos, a alma, a carne podre.
Horas depois tive alta e regressei a casa.

Faço-o em tom de piada fácil, brejeira, conto as histórias do senhor. Mas no fundo, tudo isto é apenas um subterfúgio para a imensa pena que aquele espectro acinzentado me inspirou. Não sei, despertou-me a atenção mais do que qualquer outro paciente, até mesmo o senhor com cara de bolacha, sempre sorridente, que estava na cama ao lado da minha. Era velho e sujo, dizia mal das enfermeiras mal viravam as costas. Não era simpático, dificultava o próprio tratamento. E estava sozinho no mundo.
Era apenas visitado por outro homem, que se ocupava dele como um familiar, que não tinha mais que fazer e que se ocupava dele. Dava-lhe o jantar à boca como um pai dá a um filho; ainda que perversa, esta matemática, era saudável para os dois.
Nada o espera fora das portas do hospital, apenas o lar da Santa Casa, podre poço de almas moribundas, vala comum de cadáveres vivos. Contraria o tratamento, porque depois do hospital só lhe resta esperar pela morte.

Um dia ganha coragem, sobe ao sexto andar, no elevador, e abre uma janela.

Wednesday, October 19, 2005

Noites em branco a olhar para o tecto enquanto à minha volta o mundo acontecia e eu não podia tomar parte activa

Quando temos tempo para dormir, para olhar o tecto e contemplar os minutos é quando mais vontade temos de nos sentir activos, de sentir que algo nasce nas nossas mãos. Na ânsia de escrever, dou por mim a cometer erros atrás de erros que surgem no ecrã do computador, assinalados, ora a verde, ora a vermelho.
Parece que, de repente, acordei de um sonho mau. A anos de imobilidade física, intelectual emocional, segue-se um caudal de novas experiências, de pequenas felicidades acumuladas que me dão um sentido para caminhar.


[Este tempo de reflexão, aprisionado a uma cama, com as veias a transportar os soporíferos que me acalmavam os gritos de noite; não gritava por mim, não tinha dores, queria apenas o meu tempo forçado de reflexão. Mas não, os velhos ressonam, os velhos chamam as enfermeiras e os velhos caem da cama. E obviamente, eu faço coro com eles, mandando-os para aqui e para ali, mandando-os calar, para ver se consigo um pouco de sono e descanso para mim. Mas não, nem quando a minha chinela sai em direcção à cabeça de um deles, se calam. Resultado, as enfermeiras ataram-me as mãos, porque o gajo teve que ser suturado no trombil. E eu nem sequer tive direito a um valium para dormir, já que a vodka estava completamente fora de questão.
Mas retomando a história antes de me atarem à cama por ter atirado a chinela: os velhos caem da cama. O Sr. F. (para minha protecção do personagem) cai da cama a meio da noite, acorda o quarto inteiro e eu durmo. Desconfio que me deram uma dose maior, com medo que me levantasse e começasse a brandir o suporte do soro contra todos por me terem acordado. Até que hoje, me deram um chuto no rabo e me puseram a andar, naturalmente o chuto no rabo é figurado, porque se assim tivesse acontecido, teria que lá ficar mais uns dias, e acho que já ninguém tinha muita paciência para mim.]

Ou seja, eu parei e o mundo não. Tenho agora que fazer um esforço extra para o apanhar. No entanto, ainda me encontro parado.

Sunday, October 16, 2005

Inteligência por oposição a estupidez crónica, patológica, escatológica, psicológica

“Finalmente Margarida rebelo Pinto deixou de ser ignorada pela crítica. No seu blog, o jornalista João Pedro George ocupou-se de todos os livros da escritora (cinco romances e três colectâneas de crónicas). Para chegar a conclusões espantosas: que a escritora 'se repete, copia frases de uns para outros livros, utiliza citações de escritores sem lhes atribuir origem, tem deslizes de ortografia e comete erros gramaticais'. Isto à parte da monotonia de temas e de personagens. Perante esta apurada análise da sua obra, Margarida prefere remeter-se ao silêncio: 'Não tenho absolutamente nada a dizer, não alimento polémicas.' E, embora recusando responder às criticas, lamenta o facto de a não entrevistarem pelos seus feitos literários.”

In Visão, n.º 658, 13 a 19 de Outubro de 2005, pp. 121


Bem, suponho que contra factos não há argumentos.
Nada mais há a acrescentar.

Saturday, October 15, 2005

Sem título #1

«E todas as vezes depois de satisfeita a paixão e renovado o amor, dormimos muito juntinhos sem querer saber onde começa um e acaba o outro, nem de quem são estas mãos ou estes pés, numa tão perfeita cumplicidade que nos encontramos nos sonhos e no dia seguinte não sabemos quem sonhou com quem, e quando nos movemos entre os lençóis o outro preenche os ângulos e as curvas, e quando um suspira o outro suspira, e quando um acorda o outro acorda também.»
Isabel Allende, “Paula” (1994)

Quando as palavras se esgotam em nós, recorremos aos outros, que as já utilizaram com maior mestria para explicar ponto por ponto, pinta por pinta, aquilo que nós sentimos e queremos dizer. E nessa altura, remetemo-nos ao silêncio, pedindo licença para fazer das suas palavras, nossas também.

Friday, October 14, 2005

O cemitério e homem »duas raquíticas fábulas lisboetas«

Sou um utente conformado; sigo nas carreiras dos autocarros com um ar triste e embrutecido, desejando a paz da minha casa, a paz do valium e da vodka. Mas antes dessa pacífica hora nocturna chegar, sou um utente que paga o passe e que se levanta para deixar os idosos e os inválidos sentarem-se. E tenho ar de funcionário público.
Corria a carreira do quarenta e dois a meio, ali pelas banda do Alto de São João, quando vi aquilo que vos pretendo contar. Olhei para dentro do cemitério e vi o coveiro, de profundas olheiras carregadas, a lavar a sua motorizada; preta, naturalmente. E fez-se luz sobre os barulhos que me mantêm acordado à noite.
Quando fecham as portas do cemitério, quando os lobisomens uivam da mata de Monsanto – que com certeza todos já ouvimos falar das prostitutas comidas – quando os justos repousam nos seus lares, o coveiro sai. Vestido de cabedal preto, em cima da sua motorizada. A sacar cavalinhos entre as campas e mausoléus, entre criptas e carreiros de flores, lá vai ele, acordando mortos e vivos, com o seu barulho infernal, com os seus berros satânicos.
E durante o dia, com as profundas olheiras carregadas, lava a sua Suzuki Address com a mangueira com que rega as flores pisadas na noite anterior. Com os olhos raiados de vermelho e o sorriso de quem pensa na próxima noite, nos mortos acordados e nos vivos sem conseguir dormir.

Nos tempos livres posso ser quem sou. Tiro da cara expressão cinzenta de funcionário público, esqueço que sou utente e passageiro da carreira do quarenta e dois que passa pelo Alto de São João.
Dediquei uma tarde aos trabalhos caseiros; à montagem de alguns móveis para a minha casa. Eram pesados, mas nada que um homem não pudesse, até me fazia bem aos bíceps. Depressa me enchi de calor e achei que era melhor estar à vontade. Tirei a camisola que vestia deixando os pelos do peito ao vento, coloquei um lápis atrás da orelha. Faltava mesmo a cerveja. Senti-me um verdadeiro homem, o suor a escorrer pela minha fronte, os pelos do peito a ondularem ao sabor da brisa que percorria o quarto pelas janelas abertas que faziam corrente de ar. Quando terminei, senti-me homem, cocei-me e achei que faltava mesmo a cerveja. Estava tudo bem montado, metódico e matemático. Sou um homem, um homem a valer.
Sou um homem de cama porque a aragem fez com que me constipasse; ainda não morri porque não calhou.

Thursday, October 13, 2005

Alice, meu amor

Olho à minha volta e leio inúmeras pessoas a escrever sobre o mesmo, sobre uma Lisboa impessoal e fria, com os subúrbios cheios de prédios altos e cinzentos, com pessoas encavalitadas umas em cima das outras numa promiscuidade erótica. Sobre o sentimento de pertença que se extingue aquando essa vivência comum.
Muitas vezes dou por mim a imaginar que antes de tamanhos prédios serem construídos, apenas existia ar. E antes de colocar de novo os edifícios no seu lugar, imagino as pessoas a flutuar, como se o prédio se tivesse tornado invisível; como se pudéssemos observar a sua bidimensionalidade.
As cidades grandes tornam-se impessoais por haver, no mesmo espaço físico, muitas pessoas muito diferentes. Cada qual no seu castelo de muralhas invisíveis, à distância da imaginação do próximo.

Um final sobre a dor.
A Alice perdeu-se dos pais. A Alice morreu enquanto guiava. Duas Alices tão distantes que oferecem a quem delas gosta a dor da existência.
A primeira Alice morre a guiar. Mas a morte é algo finito, algo com qual se consegue compactuar, se consegue conformar. A dor que nos dilacera o peito é abrasiva; mas vai-se suavizando até que restam só as olheiras, no fim.A segunda Alice, a Alice pequena, ainda confere alguma esperança a quem a procura. Parece transfigurar-se em todas os rostos anónimos que passam a rua lisboeta, não deixando um fim para o seu caminho, não uma folha que chegou ao fim, mas um risco de lápis que deixou de ser traçado. As olheiras foram o primeiro passo, a infinidade humana frente ao blocos gigantes de cimento, os seguintes.

Tuesday, October 11, 2005

O céu como reflexo

Os dias cinzentos que tanto gosto acabaram por ter me trair. Trouxeram-me Às mãos memórias de um passado que julgava já esquecido, trouxeram-me às mãos a razão pela qual eu gostava tanto deles.
Lembraram-me que gostava mais de ser triste do que alegre, lembraram-me que gosto de chafurdar na lama da auto-comiseração. Lembraram-me que isso se passou há oito anos.

Com tantas porcarias na cabeça durante tantos anos, às vezes pergunto-me como é que nunca me suicidei. Quer dizer, eu achava que o facto das pessoas sofrerem era algo extremamente belo, achava que o momento em que batiam no fundo e depois se conseguiam levantar tinha algo de romanticamente trágico e, naturalmente, belo.
Certo é que nunca fui corajoso ao ponto de nunca ter experimentado esse caminho. Ou então fui corajoso ao ponto de bater no fundo para depois me levantar. Ou então fui cobarde por nunca ter tomado uma decisão concreta até ao dia em que descobri que me estava levantar, com ajuda, mas que me estava a levantar. E nesse dia decidi que queria ficar de pé.

Mas estas coisas não se fazem sem uns revezes, assim até perderia o encanto de batalha ganha. Suponho que isto seja um desses revezes, num processo que está fadado para um fim glorioso e bonito, com a minha felicidade.
Tem tudo para assim ser, mas o céu cinzento traiu-me. Disseram-me mais tarde que dias assim estão cheios de energias negativas. Está bem. Seja como for, houve muitos dias cinzentos que eu gostei. Talvez porque sentia um prazer onanista no desespero do sofrimento.
Mas já não sinto, sinto-me uma massa podre quando fico parado. Mas arranquei do chão as raízes, sem vontade de voltar ao mesmo ciclo vicioso.

«I don’t know where we’re heading, but I’m glad that we’re doing it together.»
Não sei em qual foi, mas sei que vi isto num filme.

Monday, October 10, 2005

Chuva nos telhados

Está aquela luz que eu tanto gosto, a luz do céu cinzento, brilhante, que reflecte o alcatrão molhado, os telhados escurecidos pela chuva. O vermelho que ontem era tão vivo ao sol tornou-se escuro, com pequenas ervas verdes que crescem às primeiras chuvas de Outono.

Os regressos a casa não se fazem apenas de tardes silenciosas e noites excessivamente boémias. Há pessoas que vemos e que já não reconhecemos, que nos perguntam com o maior desinteresse o que é que fizemos com a nossa vida.
Suponho que seja justo que não se interessem por mim, eu também já vou perdendo o interesse; simplesmente sou honesto e não faço perguntas das quais não pretendo saber resposta alguma. Prefiro permanecer em silêncio. Talvez seja mesquinho e egoísta da minha parte, mas parece-me melhor assim.
Lembro-me de estar sentado, num restaurante, a ouvir conversas, a participar pouco. Simplesmente a estar, a tentar desfrutar as pessoas com quem me encontrava, a tentar encontrar um novo referencial no meio de tudo aquilo. Sinto-me perdido no meio de um sítio que conheço tão bem. O jantar terminou e as pessoas começaram-se a separar, cada uma para seu lado. Nem sei para onde fui, nem sei porque fui. Talvez fosse porque estava habituado a ir, porque o meu corpo se movia de forma automática.

Hoje choveu mais do que ontem. Caíram bátegas de chuva durante a noite. Dormi num quarto vazio que ecoava todos os ruídos do prédio onde me encontrava. O quarto tinha um chão de lajes, era frio. Tinha, além da cama, um armário e um cadeira. E uma persiana que não fechei porque quis adormecer a ouvir a chuva; e a mesma que me ajudou a adormecer ajudou-me a acordar, ia a manhã quase meia, quando me acordou.

No meio de tantas pessoas, nunca me tinha sentido tão só.

Saturday, October 08, 2005

Longo caminho para casa

Regressei a casa pela porta pequena, pela estação de camionetas, sem ninguém à minha espera, com quinze minutos de caminho a pé porque não estava ninguém para me ir buscar. Estava mesmo sozinho e com o coração apertado.
Tinha o coração apertado por regressar a casa: estes regressos trazem-me sentimentos ambivalentes, sentimentos contraditórios e paradoxais. Gosto de voltar, de sentir a cidade; mas não gosto por ser a cidade que é, por ser pequena de pessoas e caminhos. Quando regresso sinto que sou um filho bastardo que já nada tem a fazer cá, mas que volta porque sente uma espécie de encanto místico, uma qualquer atracção espiritual.
Há dias em que gosto de voltar, em que me sinto bem; há dias em que sinto que sufoco, que a cidade me oprime e esmaga.

Acordei cedo e saí de casa, coma roupa da noite anterior vestida, umas calças sujas, camisola a cheirar a tabaco misturado com colónia. O céu estava coberto por nuvens fininhas, que deixavam passar os raios de sol mais audazes. Outros passariam também, se mais ousados. Tinha chovido há pouco; andei a pé por locais que há muito não via, por caminhos que durante anos fiz e que estavam esquecidos. Lembrei-me do quintal do pastor alemão do qual morria de medo só do ladrar e do cão pequenino que afrontava todas as pessoas que passavam: ladrou tanto, tanto, que nos últimos anos de vida sofria de afonia.
Não sei se me soube bem regressar, está tudo com uma tonalidade demasiado cinzento pálida e tendo eu uma atracção por esse ambiente, não tenho a certeza de que estarei a fazer um juízo honesto. Sinto-me dividido, sinto que a cidade me quer dividir entre aquilo que fui, e aquilo que sou, bom ou mau.
Regressei a casa e fechei todas as persianas de todas as janelas, menos de uma. Voltei para cama e deitei-me a ouvir uma música sugestiva de recordações doces e primeiros beijos. E dormi.

O céu cinzento deu lugar a um sol quente, mas nem por isso lavou o cinzento da cidade. No fundo percebo que estou muito longe de casa, ela não se encontra num local palpável.

Thursday, October 06, 2005

Charme e arrogância

Apesar de nunca o ter reconhecido muito bem, a arrogância sempre foi dos meus piores defeitos. Muitas vezes disfarçada de várias formas, sempre fez parte da minha forma de encarar a vida e as outras pessoas. E desde sempre fui avisado, por mais do que uma vez, por mais do que uma pessoa. Chegou a haver uma altura, não há muito tempo que dizia em viva voz «quando reconhecemos e assumimos o nosso valor não é arrogância, é charme.»

E escondido sob a pretensa capa de charme, achava que as coisas me estavam a correr mesmo bem. No fundo acertei numa coisa, estava escondido. Estava escondido da minha vida atrás de mim mesmo.
Nem sempre somos capazes de reconhecer os nossos defeitos, aliás, só somos mesmo capazes de os reconhecer após outros no-los terem apontado repetidas vezes. Porque nós próprios somos incapazes de reconhecer aquilo que não gostamos em nós, os defeitos que conseguimos reconhecer, mesmo que inconscientemente. E no momento em que nos apercebemos, tentamos corrigir os defeitos, evitando-os conscientemente.

Sinto o calor da ansiedade a escorrer-me nas costas sobre a forma de suor, a fronte que se alaga e torna perturbada, o semblante carregado. Num só momento, numa só fracção de segundo consigo sentir-me cheio e vazio. As mãos pressionam com força o teclado, rompendo o silêncio da casa, arrancando ecos das paredes que me sufocavam e que agora permanecem verticais. De quando em vez levanto-me, limpo a fronte com as costas da mão.

Lembrei-me de quando estudava filosofia no secundário; lembro-me das teorias evolucionistas que estudámos, o continuismo e o descontinuismo. A primeira defendia que a evolução se fazia de forma fluida e constantes; a segunda defendia que a evolução se fazia aos arranques, aos arremedos, aos empurrões. Mesmo que não fosse adepto, tornei-me um assíduo praticante desta última prática evolutiva.
São estranhas as recordações que retiramos do passado. Nunca pensei que me pudesse ainda lembrar disto, passados estes anos todos.

Evolução à parte ou não, charme ou não, a verdade é que levei uma lição sobre humildade e medo que me vai ficar durante muito tempo. Há muito que não mexiam assim dentro de mim.
Quando terminaram, perguntaram-me se eu não tinha saudades de ser revolvido assim, bem no fundo das entranhas. Respondi que não, disso não tinha saudades.
Ainda me estou a perguntar porque é que menti, se soube tão bem ser revolvido.

Wednesday, October 05, 2005

Efeito de estufa

Estou a ficar com falta de ar, estou a sentir-me sufocado. As paredes começam a fechar-se sobre mim e no momento em que vão desferir o derradeiro golpe, voltam à posição inicial, como se a sua função fosse assustar-me, ver quando é que eu pestanejava e fechava mesmo os olhos. As paredes estão a fazer comigo um jogo que eu fazia com os amigos quando era miúdo. Simulávamos um murro na cara do outro, sem lhe tocar; quem pestanejasse, perdia. Como é natural, as distâncias não eram bem medidas e cheguei a ir para casa com o nariz esborrachado.
Mas eu sei que as paredes a caírem para cima de mim é apenas uma ilusão óptica, que existe porque tenho estado desde manhã a respirar o mesmo ar, estou a ficar intoxicado com dióxido de carbono.

Na sala há uma cadeira com uma pele de leopardo verdadeira em cima; e dentro de uma arca está a pele de uma cobra. À noite, quando é hora de dormir, faz-se magia negra, bebe-se sangue em copos de vinho. Interpreta-se o passado e prevê-se o futuro.
E não se dorme porque algo habita estas paredes e rouba o sono.
E acorda-se com os olhos vermelhos, com a cara inchada, com o saque sanguíneo digerido. E as paredes tombam e o ar rareia e as alucinações fazem-nos sair à varanda, puxar com força todo o ar que está na rua e tentar respirar. E com os pés no parapeito, inclinados para frente, inspiramos com pulmões infinitos, vemos o efeito do vácuo; e inclinamo-nos mais e mais e mais e queremos mais ar e inclinamo-nos tanto que fazemos equilibrismo no lancil e caímos e quando tocamos o chão a vida expira-se e o ar expira-se e a normalidade volta.

Tuesday, October 04, 2005

Esquerda-direita-direita-esquerda

Como contar algo que já tinha tido início há mais de um ano? Ou seja, quero dizer que ando a tentar acertar o passo comigo mesmo há mais de um ano. E acertei.

Abreviando, e muito, tudo começou na quinta-feira, dia vinte e nove de Setembro. Descia uma rua movimentada de Lisboa quando me telefonam a marcar a entrevista. Era uma entrevista para uma aplicação que tinha entregue dois dias antes, dia vinte sete de Setembro. Quando regressei a casa, olhei para o meu guarda-roupa, que actualmente é uma cadeira com um amontoado de calças, camisolas, meias e boxers.
As meias que tinha que levar já estavam à partida escolhidas, as calças não as usava há mais de quatro dias, para não as sujar, a pensar naquele momento e a camisola levou tratamento igual. Os boxers, esses foram escolhidos um dia depois, quando vieram de lavar. Ah!, os ténis também já estavam designados, visto não ter outro calçado. Basicamente, eram as calças de ganga menos largas que tenho, uns boxers vermelhos, uma camisola branca, lisa, umas meias escuras e uns ténis castanhos, de camurça.

A entrevista estava marcada para ontem, dia três de Outubro. Um dia antes, tinha roupa toda pronta. Mas faltava-me uma meia. Em pânico, virei o cesto da roupa suja ao contrário e fui encontrá-la bem no fundo. Enchi um pequeno alguidar com água tépida e algum detergente e lá dentro depositei a meia. Meia hora depois tirei-a, enxaguei-a e pu-la a secar.
No dia seguinte, ontem, já estava seca.
Bem, depois disso já não havia nada a fazer, a entrevista eram favas contadas, fui aceite no Mestrado em Estudos Comparatistas.

Jantei sozinho, festejei com dois copos de vinho e duas pratadas de sopa, caldo-verde. Entretanto tive companhia e os dois copos transformaram-se em duas garrafas, Monte das Servas.
Acho que preciso de uma aspirina e outro café.

Sunday, October 02, 2005

Dez anos de diferença

A primeira vez que pensei que podia ser escritor tive medo: e se um dia se me esgotassem as ideias? Na altura tinha umas quantas e com medo que me fizessem falta um dia mais tarde (passados uns dias já nem sequer me lembrava do sucedido, já nem sequer pensava que gostaria de escrever). Acima de qualquer coisa, tinha medo que me viesse o chamado bloqueio de escritor, assim nos ensinam os filmes norte-americanos. Acontece que desde essa altura até agora, nunca me tinha decidido a ser escritor, portanto nunca tinha tido o bloqueio de escritor.
Desde a primeira vez que pensei em ser escritor até agora, passaram dez anos. Entretanto não me tornei escritor, mas escrevo muito. E da mesma forma que nunca senti ímpetos de inspiração também nunca senti bloqueio de escritor. Acho que no fundo o processo criativo deve ser encarado como um acumular de experiências que nos leva a um lugar onde nunca ninguém esteve antes: ou então leva-nos a um lugar onde já está muita gente, mas numa perspectiva que nunca ninguém viu.

Como grande parte das reflexões que faço, era de noite e ia a guiar. Suponho que a criação esteja directamente ligada à sensibilidade, às diferentes formas que temos de absorver o que nos rodeia e o que nos sensibiliza.
Lembro-me, no meio de um deboche alcoólico, argumentar sobre processos criativos. Alguém defendia que para fazer arte era necessário noventa e oito por cento de criatividade e apensa dois por cento de trabalho; na altura fiquei a pensar naquilo, sem emitir opinião. Parece-me agora noventa e oito por cento de trabalho e dois por cento de criatividade.
Porque entretanto passaram dez anos, não me tornei escritor mas escrevo muito. E não tenho ímpetos de inspiração nem bloqueio de escritor