Berlim.
Em Berlim mal houve tempo para despedidas. Também não gosto muito de as fazer; não houve choros nem lenços brancos. Apenas o Çarik com pena de não ganhar mais dinheiro à nossa custa, os velhotes do Café da Córsega que já não olham para nós carregados de sacos de compras do mercado, a menina da padaria que não mais me vai sorrir ou piscar o olho. A mulher mais gorda do mundo teve um princípio de AVC e decidiu-se a pôr a banda gástrica que os filhos e os genros há muito insistiam que pusesse; o Lucas e o Isauro estão felizes, creio que vão para a Holanda tentar adoptar um filho: arrufos são normais em qualquer casal, hetero ou homo.
Saí de Berlim com a alma lavada e os braços cheios de dores, sob o peso cardado de duas malas.
Londres.
Sete horas e dez minutos. Ouvem-se roncos por todos os cantos e pedaços de chão livre; sempre é mais animado que Colónia há três meses atrás, em que se trocaram as cadeiras do aeroporto por um Íbis à mão de semear por mais uns quantos euros. Desde criança ouvi dizer “em Londres sê londrino” e eis que o sou. Vesti o casaco do fato, pousei a mala cheia de fita adesiva para não rebentar com o excesso de volume e carreguei no play do leitor portátil de música para ouvir um álbum de edição única japonesa dos Blur, comprado numa feira da ladra, versão berlinense: “em Londres sê londrino”.
Um ronco especialmente sonoro e o olhar desconfiado de dois senhores munidos de munições nas suas metralhadoras a tiracolo.
Decidi-me pelo cappuccino mais caro da minha vida onde esbarrei com dois portugueses: felizmente iniciei a conversa em inglês, tal é a minha lusofobia.
À minha frente uma moça inglesa bebe chá e observa, pelo rabo do olho, o meu bater de pé ao ritmo da música que não ouve, a minha frenética escrita enquanto enrola um cigarro. E ainda a família inglesa: a avó ensina os lavores à neta através de uma revista adquirida à cinco minutos atrás com a intenção de pelo natal próximo oferecer toalhões bordados a todos os membros da família; o filho lê avidamente o último livro do Harry Potter, vendido no aeroporto por 11.99 libras, feitas as contas 16.79 euros; o pai cabeceia para cima do copo de chá em cima da mesa; a mãe comenta, com uma amiga, via mensagem de texto do telemóvel, os novos escândalos da família real que também tive oportunidade de ler nas letras grandes do Sun e do Daily Mirror.
(...)
Faço check-in daqui a uma hora e meia. O meu cappuccino caro e gelado já está acabado e a última golada foi tudo menos gelada. Desinteressei-me da rapariga que me olhava pelo rabo do olho quando reparei nos pés visíveis pelas sandálias que usa. Há muito que não vêem uma lavagem, ao que parece.
Em cima da minha mesa: um maço amarrotado, um cinzeiro com as beatas dos meus três últimos cigarros, uma caixa de fósforos, o telemóvel, um isqueiro, 68 pence, o marcador do bloco de notas, o leitor de música, uma garrafa de água pela metade, o copo do cappuccino vazio. Um bloco de notas e uma mão bastante frenética que segura uma caneta que escreve a preto e vermelho e ai da tem lapiseira.
Duas crianças, a uma distancia de seis metros, com quatro e seis anos, abraçam a mãe com verdadeiro amor edipiano. Gosto mesmo de longas esperas em aeroportos, da familiaridade casual das pessoas que esperam e roncam espalhadas pelo chão e pelos cantos. Gostava mais se a minha companhia não fosse eu próprio.
Abro a mochila, tiro o outro tabaco e enrolo um cigarro. Para acompanhar com o meio litro de água que me resta e com a sanduíche que esperava que durasse até Portugal.
Toca aos meus ouvidos: “Wrestling with words at last.” Enfim.
Porto.
Fechei os olhos para não reconhecer que estava em Portugal. Fiz mal; porque quando tive que os abrir reparei numa inglesa que trazia uma mini saia muito mini e que tinha andado na fila sempre à minha frente.
Lisboa.
Um dia mais tarde, hoje mesmo de manhã, ia com uma das minhas irmãs no metro. Aparece no fundo da carruagem um acordeonista a tocar e a pedir. Cheguei a mão ao bolso das calças e senti a carteira; queria dar-lhe algum dinheiro e lembrei-me que era pobre. Olhei a carteira e pensei: “não tenho dinheiro para mandar cantar o ceguinho, quanto mais para mandar cantar um que vê. Ora esta.”
Gastei o dinheiro num álbum da Nina Simone.
Portalegre.
Supostamente casa. Mas já não o é. Deixou de o ser.
Lamento. Ou não.