Friday, September 30, 2005

Memória Fotográfica

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Lembrei-me de algumas fotografias que tinha tirado com o telemóvel. Têm quase dez meses, mas parece que foi há muito mais tempo.
Esta fotografia foi tirada numa noite de muita chuva, num bar muito pequenino em Évora. O interior de um esquentador feito candeeiro. Um atirou fumo do cigarro para a luz e o outro tirou a fotografia. Há muitas mais memórias dessas noites, mas gosto particularmente desta fotografia, pelo efeito que as cores ganham com a má qualidade da fotografia. E porque me faz lembrar de quem fui.


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Foi tirada no penúltimo dia da exposição da Paula Rego no Museu de Serralves, dia vinte e dois de Janeiro. Viajámos de Évora ao Porto e voltámos.
É um dos quadros que mais gostei. Apesar dos personagens terem sempre expressões muito grosseiras e masculinas, acho este quadro pleno de intimidade feminina, de confidência.
Tenho pena de já não me lembrar do nome do quadro.


Acho que é bonito recordar, encontrarmo-nos com o passado sem que com isso haja conflitos. Hoje encontrei-me com o meu, no exacto momento em dei um grande passo para frente. Dei o passo para frente e olhei para trás, para ter a certeza de onde tinha vindo, para ter a certeza para onde vou.
Olhei para trás sem saudades, apenas com melancolia.

Wednesday, September 28, 2005

Três noites sem sono

Uma a uma, as pessoas deitaram-se. Sinto bem na pele o cansaço da terceira noite de semi-vigília. O sono custa a chegar, as horas da noite arrastam-se e, chegando a manhã com o seu sol conciliador, chega também a ausência de sono, o cansaço acumulado sobre o corpo. Erguem-se os dias numa barreira de solidão e inutilidade, erguem-se vorazes, devoradores da rapidez do tempo.

Cada dia que se arrasta é apenas uma colecção de horas que faço, esperando a notícia, a novidade. Mas os dias demoram, estendem-se em contornos de ansiedade e respirações profundas. Às vezes olho ao espelho e penso que talvez esta tenha sido uma má altura para deixar de fumar: agora era uma boa altura para ter uma desculpa que me permitisse fumar desalmadamente. No entanto, não sinto vontade de fumar.
Olhei ao espelho a meio da noite, após ter conseguido dormir três horas. Eram quatro. Reconheci na minha testa rugas de expressão. E estava a dormir. Não tenho tido um sono pacífico, povoado de sonhos estranhos, visões e desejos de um futuro próximo. Receios e medos recentes ou reincidentes. As três horas que tinha dormido tinham-se resumido a um visceral combate entre o corpo e a matéria.

Quando volto a levantar a cabeça, escrevi duas páginas de um código indecifrável. São os meus sonhos elevados ao expoente do ecrã de computador, incompreensíveis até para mim. Deixam uma marca indelével na memória do acordar.

Tuesday, September 27, 2005

Pessoas da rua

Só vi pessoas que se assemelhavam a personagens de livros, pessoas tristes e felizes, pessoas que tem casa para onde voltar, pessoas reais e pessoas que só podem existir na minha imaginação. No fundo, não se eram mesmo personagens do livro que tinha andado a ler na última semana. Eram todos tão parecidos; podiam ser também personagens de outros livros que já tinha lido, anos antes, meses antes, semanas antes.

Entrei no metro na estação de Saldanha e estava um homem alto, risca ao lado e cabelo comprido sentado num banco; sentei-me ao seu lado e assaltou-me uma dúvida, onde é que eu já o tinha visto. Usava um pólo às riscas azuis, verdes e vermelho escuro, calças de bombazina vermelhas, escuras também e um casaco de fazendo grosseira, puído e descarnado nas mangas e nas bainhas. Trazia uma pasta.
Chegou o metro e as pessoas desviaram-se dele, afastaram-se entrando por outra porta que dava acesso a outra carruagem. Comecei por segui-las, mas acabei por voltar para trás, acabei por escolher um lugar que me deixava contemplar o homem à vontade. Alto como era, estava levemente encolhido sobre si mesmo, como se o medo das outras pessoas lhe pesasse nos ombros.
Saiu na estação de Entrecampos.

Vinha de casa para casa. No autocarro, longa carreira, de quarenta minutos. Reparei noutro homem, pele curtida pelo sol, áspera, como as mãos que se agarravam evitando o desequilíbrio do corpo. Sentou-se ao meu lado, do outro lado da coxia quando uma senhora se levantou. Na paragem seguinte entrou outro senhor, que se dirigiu ao primeiro perguntando-lhe pelo dinheiro que lhe devia.
Tinha uma voz nasalada, uma voz de perigo, de quem não se intimida por estar num autocarro cheio. O primeiro respondeu que se ali tivesse o dinheiro lho dava, mas que não tinha. A culpa tinha sido do outro que lhe tinha emprestado o dinheiro e que não lhe agradava que ele o andasse a expor em publico, no autocarro.
Saíram duas paragens antes da Praça do Chile, pelo vidro de trás vi uma navalha a sair e a rasgar a cara do primeiro, num lanho profundo.

Tinha-me levantado um pouco antes. Olhei em volta, as pessoas do autocarro. Qualquer uma delas de ouvidos e olhos atentos ao que se passava, mas muito pouco interessadas no desfecho.
Senti-me conivente com elas, anónimo, escroto.
Subi ao sexto andar e contemplei a rua onde costumo ver as mulheres, de noite e madrugada, aceitar e rejeitar os carros que passam.

Sunday, September 25, 2005

Vento Cinzento

E o monsenhor disse “Que a paz de Deus esteja convosco.”
E eu pensei «Que se foda a paz de Deus, eu preciso é de paz de alma.»

Não foi por aqui que começou o fim-de-semana, mas bem podia ter sido. Nem sei bem quando começou.
Acho que os dias não são tão estanques como a semana nos pretende impor, já não existe uma tão definida separação entre o que são os dias úteis e os dias inúteis, os do final da semana. Os dias agregam-se uns aos outros, numa toada desfocada, numa espécie de continuidade cinzenta. E chegado o final da semana dei por mim a arrumar malas sem sequer as ter desfeito, a viajar de um local para outro, desejando no fundo um pouco de paz.
Passadas duas horas acordei. Tinha guiado durante esse tempo todo. Tinha? De certeza? Não me lembro, nem sequer da última ultrapassagem. Só quando a cara dos familiares a aproximarem-se para nos cumprimentar é que dei conta de onde estava. Outra vez longe de casa, sem ter um sítio onde chamar casa. Porque nos últimos tempos tenho andado sempre tão longe dela, a dormir aqui e ali, sem pouso definido e concreto.
O vento soprava forte e o céu estava cinzento. Na sala da casa havia uma janela enorme, com várias portas, viam-se os socalcos do terreno, as casas feias, tudo em tonalidades de sujidade e abandono. Estava um dia de Outono. Vento e frio. Um raio de sol que espreitava; havia alturas em que parecia ter retornado à época medieval, quando os olhos ficavam muito tempo presos na lareira, a contemplar a irregularidade das labaredas. E de repente alguém gritava,
«Não deixes morrer o lume… Quem é que trouxe esta lenha? Está toda podre, arde num instante…»

Éramos quinze numa mesa muito grande. Todos familiares, uns directos, outros por afinidade. Antes disso a casa foi benzida pelo monsenhor, familiar directo. Terminou.
E o monsenhor disse “Que a paz de Deus esteja convosco.”
E eu pensei «Que se foda a paz de Deus, eu preciso é de paz de alma.»

Começou o almoço na mesa grande, com conversas cruzadas e de inocência turvada. Senti-me cada vez mais longe de casa, pensei que devia era estar com o vento do Outono que anuncia a breve chegada do Inverno, devia estar no céu cinzento que permite um raio de sol de quando em vez. Sentia a terra a entrar dentro de mim, a terra húmida e fria, lamacenta. Tentei não perder de vista as sensações deste Outono, a vontade de ser vento veloz, a vontade de ser terra húmida, de ser sombra de árvore em dias de nuvens.
O monsenhor voltou a falar, a rezar qualquer coisa dos frutos da terra. No fundo acho que ninguém lhe prestou muita atenção, talvez a minha avó, sua irmã, católica devota. Os outros, católicos falsos e verdadeiros, pensavam nos frutos silvestres de um doce que não durou até ao lanche.

Dormi na cama das minhas lágrimas, na tarde sem sol.
Saí de casa, caminhei por um caminho de alcatrão que julgava ser de terra.
Regressei no banco de trás, mais uma vez sem ter tido consciência da viagem que fiz. Jantei na companhia de três pessoas, sem sequer me conseguir lembrar daquilo que conversavam, daquilo que partilhavam umas com as outras. Tinha ainda demasiado dentro de mim, demasiado à flor da pele a terra húmida, o vento frio da tarde sem sol. Do miúdo e da bicicleta que desafiava todos, na sua valentia.

Lembrei-me de ouvir alguém a falar ao telemóvel, para depois reportar a todos que a terra da minha mãe estava a arder. Contaram que tinha havido um casamento de 600 pessoas. As aldeias estavam vazias. Quem pegou o fogo, em três locais diferentes, foi o 601º convidado. As pessoas são perversas.

A tarde de vento e céu cinzento acabou em tarde de cinza, longe de casa.

Wednesday, September 21, 2005

Marca de água

Senti finalmente a paz inundar-me o espírito, consegui finalmente estabelecer uma trégua eterna com os meus demónios, fantasmas, passado que me assombrava e me retirava o sono, ou o descanso que com ele conseguia.
Senti a paz como uma traição. Porque neste momento deveria estar a experimentar o mais profundo sentimento de perda; no entanto não o sinto. Sinto que a minha vida deve continuar a evoluir, não deve ficar parada no tempo e ainda que eu sofra com a perda, não deixo que esta manipule a minha vida, que a tome pelos pulsos, braços, tronco, pernas e a devolva à inércia em que vivi. Sinto-me agora capaz de lidar com a ausência.

Estive com poucas pessoas hoje, três ou quatro, falei com outras tantas ao telefone. Algumas perguntaram-me como estava. Estou bem, triste mas bem. Porque é parte inalienável do amor, a tristeza.

Há marcas que são indecifráveis, que só passados anos é que as reconhecemos como inícios ou finais de períodos da nossa vida. Outras são tão óbvias que se não as reconhecermos logo é porque as não queremos ver. No mesmo dia, perdi parte de mim e fui publicado pela primeira vez, comecei a ver um sonho esboçado a ganhar contornos de realidade. Há marcas que não se podem ignorar.

Desce pelo meu corpo a paz que mais tarde chamarei desespero e dor, mas que agora ainda é paz. Sorrio, no espelho da porta vejo que é um sorriso triste. Mas é um sorriso de paz, um sorriso que me diz que vai tudo correr bem. Mas cresce, numa proporção directa à certeza de que tudo vai correr bem, a dor da ausência.

Monday, September 19, 2005

«Keep Strong»

As lágrimas que caem sobre o teclado não existem: são as mesmas que caem sobre o ecrã do computador sob a forma de letras.
(Lembro-me do tempo em que me autodestruía de forma a conseguir ser criativo e vejo-me agora incapaz de raciocinar, de dar um seguimento aos pensamentos porque me sinto vazio.)
Arrancaram de mim uma importante parte. Arrancaram pelas vísceras, arrancaram com todas as forças. Como conseguir ser criativo se me sinto tão vazio? Sai-me tudo demasiado pessoal, demasiado íntimo para ser partilhado. Não há metáforas nem hipérboles nem hipérbatos que consigam transformar esta dor, que lhe consigam dar uma toada mais lírica. Dói que parece que vamos explodir, que não vamos aguentar mais, que nem sequer cabemos em nós, que desesperamos. Não dói do amor frustrado, dói do amor conseguido.

A despedida foi hoje, mas a partida é amanhã. Cedo.
Talvez seja melhor assim, talvez não seja forte o suficiente para aguentar a violência de uma despedida deste tamanho. É a primeira vez que vivo uma perda como esta: por todos os verbos acabados em “ar” que me ensinaram.
Tenho-me debatido no dilema de ir ou não ir ao aeroporto, de esquecer que à volta existem mais despedidas e que existem pessoas e que existe uma cidade que rodeia aquele momento e deixar-me esvair em lágrimas. Mas sucumbi à cobardia dos que não têm força para aguentar a violência existencial. Talvez seja melhor assim. Talvez não. Talvez.
Conversámos e achámos que era melhor assim. Evocámos todas as razões racionais e sentimentais para que fosse melhor a minha não ida ao aeroporto. Mas porque é que me sinto tão mal? Sei que no aeroporto desejaria mil vezes que aquilo acabasse rápido, não fui talhado para despedidas longas e dolorosas. Violentas, dilacerantes. A conversa terminou, achámos que era mesmo demasiada violência, para qualquer um de nós, para os dois.

Passaram-se as últimas horas em amena conversa, em riso tranquilo e sem pressas. A disposição era calma, como se o tempo do mundo estivesse ao nosso dispor, não houve pressas nem atropelos, foi uma tarde que foi passando. Os ponteiros ignóbeis, ignorados. O tempo foi nosso, nem demasiado rápido, nem demasiado lento, na proporção exacta.
De vez em quando um clarão negro de tristeza surgia nos olhos, ou de um ou de outro; era rapidamente apagado com um beijo ou com um carinho. Houve um momento em que não abri a boca, em que disse tudo. Ela respondeu «Eu ouvi o que disseste». Sorri, há coisas que não necessitam ser ditas.

A tarde alongou-se até chegar com os braços à noite, agarrou-a e puxou-a a si. Abraçaram-se, tarde e noite, com força, até a madrugada vir para as soltar. Ao passar pelo parque, a caminho do carro, é que senti realmente que estava minutos de me perder, de perder parte de mim. Abraçados o caminho todo, estava frio, o vento do Outono tinha chegado dois dias antes, já ameaçava Lisboa, já ameaçava as folhas das árvores.
Entrámos no carro, andámos alguns metros até à porta do meu prédio. Dois suspiros, longos, langorosos e doridos ecoaram pelo carro.
Num abraço de desespero incontido, senti a boca encostar-se ao meu ouvido, num movimento quase imperceptível, num sussurro quase inaudível. Eu disse «Eu ouvi o que disseste». Respondeu-me com um sorriso.

Saí e começou a manobrar o carro. Estava sinal vermelho. Fiquei a olhar para ela. Abriu o vidro e aproximei-me. Agarrou a minha mão com força, beijou-me a palma e disse-me «Keep strong».
Ficou verde e arrancou, no meio dos outros carros, no meio das luzes da cidade.
E as lágrimas negras, uma a uma sobre o teclado, uma a uma no ecrã.

Sunday, September 18, 2005

Pacto de Ternura

Voltei ao parque, descalço. Com vontade de receber sol e ver a relva, os olhos espalhados pela imensidão de verde.
Fiquei com o livro fechado sobre o regaço e o leitor de música na mochila, a inspirar a felicidade das pessoas. Havia a avó super protectora a dizer aos netos que não podiam sair do jardim, os casais que namoravam, as pessoas que estavam só por estar, os que liam e os que tentavam ler, os que jogavam futebol, os que passavam, por fazer o parque parte do seu caminho.
O casal com a criança de um ano que começava a conseguir pôr as pernas, uma à frente da outra, nos primeiros arremedos de passos. E caía na relva e voltava levantar-se e ria-se e voltava a tentar pôr os pés um à frente do outro. Os pais deleitavam-se com a menina que ria e levantava o vestido e se levantava do chão; disputava o casal o amor da filha, que sem saber, já era objecto de discórdia. Com visível amor, o pais queriam que a filha gostasse mais de um do que de outro; faziam esse ritual de auto-segurança sem darem bem conta do que estavam a fazer. E pensar que havia tanto amor. Porque a mãe luta pela criança com as mamadas, com a relação umbilical. O pai recupera agora o tempo perdido, disputa a filha com cócegas e mimos, com histórias de adormecer e um biberão de leite morno. Como a disputará com uma nota de vinte euros dada à socapa nas primeiras saídas nocturnas.
Mas o casal é feliz na doce disputa do amor. O amor entre eles já não interessa, interessa sim o amor da filha, porque esse existirá enquanto a vida existir.

Do parque não guardo só as memórias da tarde, as imagens que recolhi das pessoas, os movimentos e os gestos. Guardei também todos os outros parques em que estive, em que partilhei e dos quais agora me despeço. Não que agora tenha deixado de ir para os parques, agora despeço-me deles porque os encaro numa perspectiva diferente, muito diferente. Não sinto a mesma vontade de ir partilhar segredos e beijos: porque agora vou sozinho. E não é igual, não é mesmo nada igual.
Mas a despedida não implica ausência, vou continuar a ler nos parques, a observar as pessoas.
Porque se continua a partilhar a mesma ternura, o mesmo olhar ansioso de outro amasso, o mesmo segredo dito em voz muito baixa, quase imperceptível, o sussurro que se transformou em beijo. À distância de muitos quilómetros. À proximidade de um bater de coração.

Friday, September 16, 2005

Atirar pedras ao mar e fazer ricochetes

Sempre me acompanhou uma sensação de perda; não de agora, de há anos. Como se parte da minha vida me tivesse sido negada e não a conseguisse mais encontrar.
Numa noite de muito vinho, de gin, o sentimento de perda foi-se acentuando, e à medida que as horas vão passando, acentua-se cada vez mais. Uma espécie saudosa por antecipação.
Já não se contabiliza o tempo por semanas ou dias, começam as horas a tomar conta do pensamento. Sinto que tudo à minha volta se começa a estragar, o ecrã do computador, o álbum riscado, o iogurte fora da validade. Parece que as pequenas coisas dão forma à sensação da ausência, da morte interior que vai ganhando forma; começa, à minha volta, a morte a acontecer.

Ontem assinei o contrato para uma casa; uma casa que vou partilhar com mais pessoas. Uma casa que marca o início de uma nova fase, de um novo sentido na minha vida que, até agora, tinha sido totalmente desprovida de um. Comecei há pouco a ter uma noção definida daquilo que pretendo fazer, daquilo que me faz acordar todos os dias, daquilo que me faz sentar ao computador e premir as teclas. O que me faz acordar todos os dias é justamente o premir das teclas, o barulho que faz este teclado tão antigo, as ideias escritas à pressa e espalhadas em pedaços de papel na secretária, ou no banco que serve de banca de cabeceira. O som que sai distorcido das colunas pequenas, a música que me faz tremer por dentro, a mesma música triste que daqui a alguns dias vou achar insuportável.

A dor não existe por existir, a dor não existe para trazer com ela a criatividade dilaceradora e falsa. A dor existe porque faz parte do todo, porque faz sentido existir, porque está intimamente ligada – muito intimamente – ao amor. E por compreender que é o lugar dela existir, aceito-a, minimizando-a com a esperança de que se vais contabilizar o tempo por horas e não por meses e semanas.

Wednesday, September 14, 2005

Alice, Miguel, Norah, Régine

O vento entra pelas janelas abertas, um vento quente, suão. Mas é de noite, as luzes da estrada dão algum conforto na solidão. Carros e carros e pessoas dentro dos carros a dormir. Pessoas que contemplam aquilo que a velocidade do carro lhes permite, o vento que faz com que semicerrem os olhos, com que semicerremos os olhos.

Alice.
Ia a guiar e morreu. Morreu num acidente. Gosto de pensar que ia a guiar e a contemplar o céu a azular, a escurecer no crepúsculo que ela julgava ser apenas do dia, não o seu. Porque morreu sem dar conta, com as imagens das montanhas e o sol a esconder-se, o céu azul e vermelho, as suas roupas rasgadas e ensanguentadas, vermelhas e azuis. Os olhos abertos, sem vida, a contemplar a morte e as montanhas e o céu. Morreu com um sorriso. E uma folha mais caída da árvore.

Miguel.
Ia a guiar e viu a morte. Ia olhava para a beata acesa do cigarro, distraía-se com a música que pulava violenta do auto rádio. Quando saiu do carro vomitou, quando saiu do carro chorou sozinho por não ter morrido, por se ter entregue à morte e ter sobrevivido. Sentou-se na berma da estrada a olhar o carro e mais do que nunca sentiu-se sozinho.
Quando tentava viver, agarrar-se à vida sem saber como, tentaram matá-lo. Ia a guiar e baterem-lhe de lado. Não lhe acertaram, acertaram do outro lado. Não morreu.

Norah.
Dormia na paz do banco de trás enquanto acontecia o crepúsculo do dia. As janelas iam baixas, o vento sussurrava-lhe a face, aliciando-a ao sono. Os olhos iam-se fechando com o cansaço e com o vento forte, o vento cálido era tão saboroso. O carro deslizava quase sem barulho, o vento cantava aos seus ouvidos uma canção de embale muito doce, fechou os olhos e adormeceu. Não deu conta de ter morrido e quando a encontraram tinha uma expressão de doce sono, de nunca ter dado conta de que tinha morrido. Era filha da Alice.

Régine.
Canta a morte da Alice e da Norah. Canta-a com a dor pujante de quem não morre, de quem fica para trás a apanhar os restos daqueles que já partiram. Conta as folhas que caem da árvore tão depressa e não deviam, é Primavera, não Outono. Sente dentro de si a morte dilacerar as vísceras, sente-se morrer mais do que aqueles que teve que ver descer para debaixo da terra. Canta com raiva e amor. E muita tristeza.


Escrito a partir de «In The Backseat», Arcade Fire, “Funeral” (2004)

Monday, September 12, 2005

Segunda-feira de sol

Descalcei-me e senti nos pés a relva fresca. Deitei-me no chão, olhei para o céu. Vi o risco branco de um avião e lembrei-me do que me tinham ensinado: pedi um desejo.

É bom ter um jardim com um relvado grande à porta de casa. De manhã.

Saturday, September 10, 2005

Sábado Sabático em Silêncio

A casa esteve fechada o dia inteiro. A luz foi filtrada pelas persianas, pelas cortinas, pelos vidros das janelas. Respirei o mesmo ar vezes sem conta, até que os pulmões de inspirar e expirar o mesmo ar.
Desde cedo que fiquei sozinho e me entreguei aos mais perversos exercícios mentais, os pensamentos de quem se encontra sozinho, de quem está entregue a uma casa e não quer ser encontrado; ou quer?
Sei que temo o momento em que vão tocar à porta, em que vão arrancar palavras da minha boca, em que as minhas cordas vocais vão vibrar deliberadamente porque é socialmente necessário que eu responda a quem a mim se dirige. Podia ficar em silêncio, evitar a comunicação com o mundo exterior. Estive sete horas sem conversar, nem mesmo comigo. Estupidifiquei-me deitado, sentado, adormecido, acordado, no sofá. Decidi que mais não podia ser. Liguei o computador e aquele álbum que me ofereceram ontem, por ocasião de um festejo tardio do meu aniversário, Nouvelle Vague.

Consigo ainda sentir os olhos sonolentos de uma manhã mal resolvida na cama. Consigo senti-los a pesar perante a luz forte do computador. Esteve um dia de sol e eu não o vi, escondi-me atrás dos vidros e das cortinas e das persianas. Dirigi-me a outra divisão da casa e tive que voltar a respirar, o ar pesado respirado e repisado não era o mesmo, era um ar fresco e frio como essa parte da casa que não recebe sol, durante parte alguma do dia.Espreito por entre as frestas da persiana, pelos pequenos buracos o dia que se esvai, desperdiçado, vazio, sem sentido. Volto a sentir o peso nas minhas costas, o peso que preferia não carregar, da culpa da inércia, da preguiça e da eterna luta da vontade contra o peso e os músculos e a carne.

Friday, September 09, 2005

O Adrian Mole e eu

Quis ser escritor pela primeira vez aos treze anos. Mais ou menos na mesma altura em que estava a ler Adrian Mole. Ler os primeiros três livros deixou-me um sabor amargo na boca, porque encontrava, mais coisa menos coisa, o meu retrato. Bem, talvez o retrato de todas as pessoas que têm treze anos e querem ser escritoras.
Era inspirado pele mesma amargura, pela ternura arrogante, pela altivez de quem se julga especial. Com todas as coisas boas e más que vêem aliadas a isso; mais as más que as boas, porque boas não há muitas. Identificava-me muito com Adrian Mole pelo ostracismo a que me votava. E ao mesmo tempo, não queria ser como ele porque ele era xenófobo, racista, imbecil, parvo, pouco inteligente e eu não era nenhuma dessas coisas. (Olhando para trás, acho que era tudo menos racista e xenófobo.)
Os anos foram passando e eu sempre pensei muito no Adrian Mole. Na sua capacidade de escrever, na ausência de vida amorosa, na ignorância a que se entregava. Comecei a achar que talvez fossemos muito diferente – não que a minha vida seja muito interessante para os outros, pelo menos eu sinto-me feliz com ela e quando não me sinto, faço algo para a mudar.

Lembrei-me do Adrian Mole e de mim quando hoje ia na rua, à chuva. Vinha da Culturgest, ao chuvisco e passou por mim uma rapariga que ficou muito tempo a olhar para mim. Não me olhava como se estivesse interessada em ver que roupa eu vestia ou o que é que a minha camisa tinha escrito. Olhava-me fixamente nos olhos, como se quisesse ver-me por dentro, como se estivesse interessada no que me preenchia e não no meu invólucro. Não consegui suportar o olhar que me revirava por dentro, que descortinava e remexia nas minhas entranhas. Baixei os olhos e olhei para uns ténis pretos e brancos e umas calças de ganga que passaram por mim.
E pensei se esta rapariga, que me olhou tão para dentro, me reconheceria quando eu pudesse apenas escrever livros, quando as pessoas lessem aquilo que eu tenho para escrever.
E lembrei-me de um e-mail que me enviaram alguns dias atrás: não dos mais fáceis de ler, mas dos mais bonitos pela honestidade que comportava. Dizia que eu era arrogante e que era uma fábrica de boas ideias subaproveitada; que na ausência da arrogância, seria uma pessoa muito melhor porque saberia receber ajuda que tornaria as minhas ideias muito melhores.
E lembrei-me do Adrian Mole e da sua própria arrogância. Do seu isolamento do mundo, da sua pretensa superioridade. Voltei de novo aos treze anos e não quis ser assim.
Passava por cima do rio Tejo, numa ponte e disseram-me que eu partilhava e que isso era uma das coisas boas em que eu tinha mudado. Lembrei-me do e-mail da minha irmã e do Adrian Mole e das conversas que tenho com a minha Dulcineia. Está na altura de partilhar a ideias, não só sentimentos e espaço.
É bom ter pessoas que gostam assim de nós e nos impelem a ser melhores pessoas e a mudar. E que nos dizem estas coisas com honestidade e sinceridade sem magoar.

Tuesday, September 06, 2005

Mesmo que feches os olhos

Mesmo que feches os olhos vais ver.
Isto porque se passou, há alguns dias atrás, bem à minha frente. Estava dentro de um carro e não sozinho, olhava pelo vidro da frente uma prostituta, que carro atrás de carro, renunciava clientes. Até os cinco homens que vinham dentro de um Honda Civic, com suspensões rebaixadas, saias e escape barulhento, que prometiam mundos e fundos e muito dinheiro e mesmo sem o dizer prometiam violência e não pagamento. Olhava uma imagem que dias mais tarde me trouxe pesadelos, horas mais tarde me trouxe pesadelos.

Era uma mulher, metros adiante tinha um chulo que conversava com outros chulos, que guardavam as suas mulheres, que as rodavam com outras mais noves e menos gastas – no seu linguajar – e que as vendiam para ganhar dinheiro, para poder ter aquele carro melhor, mais um fio de ouro ou o que quer que seja que faz um homem vender uma mulher.
A mulher renunciava todos os carros que passavam, os melhores, não vi parar nenhum carro que não se pudesse considerar um carro bom. Desejei-lhe bem, desejei pela sua sorte quando o Honda Civic parou. Dizia em voz alta, por favor não aceites, não aceites. Porque num carro daqueles com aquelas pessoas, a noite não acabaria bem. Nunca acaba, suponho eu, para pessoas assim. Umas vezes acaba melhor, outras nem por isso. Mas para quem vive assim, a noite nunca pode acabar bem. Ou acabar a bem.
Custa a primeira vez que abrem as pernas por dinheiro. Chora-se, sentem-se sujas. Depois depende-se do dinheiro ganho a vender o corpo, qualquer parte que seja, é igual. O que muda é o preço.
Pára um carro pequeno, lá de dentro sai uma outra mulher. O cigarro bem atravessado nos lábios, mal aceso pela pressa. Por cima das calças de tecido preto, arranja as cuecas. Custa-lhe o andar, não terá sido fácil esta parte da noite. Arranja as cuecas para que estas não lhe magoem mais a alma, para que a não mais a torturem quando se for deitar, quando ao céu aparecerem os primeiros alvores. À distância de poucos metros, está a mulher que renuncia os carros, que se aproxima dos vidros mas que se amedronta aquando a negociação. Faltam alguns metros e à mulher que vem com o cigarro atravessado nos lábios e a arranjar as cuecas para não a magoarem custa-lhe andar. Metros que parecem quilómetros.
Peço para ir embora dali, que já não suporto mais o abjecto espectáculo. Consigo imaginar todas as lágrimas que são derramadas quando, aos primeiros alvores, sucumbindo ao cansaço no leito.
Vejo estas mulheres nos meus sonhos que demasiado cedo se tornaram cadáveres, esqueletos da espécie humana. Pedaços de ossos sem carne. Por muito que tivesse fechado os olhos, elas voltaram. A rejeitar os carros, a fumar e a arranjar as cuecas dos abusos.

Sunday, September 04, 2005

Gin-Tonic e malmequeres

«Hum, gin-tonic… Que bom gin…»

Dei início ao serão com uma golada de gin, dei as boas vindas ao fim do fim-de-semana com uma valente golada de gin-tonic sem gelo; por muita vontade que tivesse de uma bebida bem gelada, de um aperitivo que desse as boas vindas ao fim do fim-de-semana, não havia gelo. Então seja, algo à temperatura ambiente. Algo que, de certeza, fará uma grande barafunda gástrica e mental.

Senti-me cansado, senti que todo o peso da ausência de sono tinha caído em cima de mim; lembrei-me de como, há alguns meses atrás, conseguia aguentar noitadas bem regadas e ainda ir trabalhar, como tinha força para dormir poucas horas durante muito tempo. E vejo nas portas espelhadas uma cara que me pede sono, umas olheiras que se estendem negras. E um copo de bebida, para enganar o cansaço. Como se, subitamente, todo o cansaço acumulado caísse em cima de mim. E não só o cansaço do último ano, nem dos últimos quatro anos. Algo um pouco mais longo, que se estende à cronologia dos últimos dez anos.

Ausentei-me de mim durante tanto tempo, para descobrir que não tinha razões para ser tão ausente. Para descobrir que talvez não fosse tão socialmente inadaptado. Ou sou, ou não sou ou sou ou talvez seja como o jogo do malmequerbemmequer, aleatório. Ou se previamente contarmos o número de pétalas, sabemos por onde começar e sabemos onde vai terminar e sabemos se casamos ou não.
(Ou jogo das papoilas infantis, galo galinha ou pintainho.)

Passei o dia afundado no sofá, na inércia do não fazer nada, na ausência de pensamentos ou vontade do fazer. E abri o cucuruto da minha cabeça e despejei, à temperatura ambiente, copo e meio de gin-tonic, a frio. Porque não havia gelo.

E isto para não conseguir dizer nada, para continuar absorto em pensamentos e passar nada para a escrita. Para encontrar, impresso no ecrã do computador uma série de pensamentos aleatórios sobre o fim do fim-de-semana, ligações desconexas e esparsas.

Thursday, September 01, 2005

Arte Comestível

Trabalhar de manhã é sempre complicado; não porque é de manhã, mas sim porque antes de ser manhã foi noite. E com a noite vinho e conversa.
Mas vamos pôr os pontos nos “is” e os traços nos “ts” antes de começar. Porque tudo isto acontece num contexto temporal desfasado da realidade, ou seja, já aconteceu há algum tempo atrás.
Recentemente fui ver o filme “Charlie And The Chocolate Factory”. Isto porque acho que o personagem principal, interpretado pelo Johnny Depp, tem algo a ver com o que se passou. Porque para ele o fabrico de chocolates era arte, tinha por trás um conceito artístico muito sustentado, assente em pilares de paladar e conhecimento muito sólidos.

Estava em casa da minha irmã, de conversa. Não estava sozinho, estava com a minha irmã e com a minha doce companhia. Conversávamos, nada de importante, nada de especial. A minha doce companhia estava a ver a casa da minha irmã pela primeira vez, observava com os seus astutos olhos o circundante. Tínhamos um jantar combinado, não ali. Num repente lembrei-me
«O queijo…»
Porque para o combinado jantar tínhamos comprado um queijo que necessita de frigorífico – queijo feta. Enquanto me dirigia à cozinha para entregar o queijo ao refresco frigorífico ouvia na sala o diálogo. Dizia a minha doce companhia olhando um puzzle na parede, a servir de quadro
«Ah, gostas de Klimt?»
Ao que a minha confusa irmã responde
“Não sei, nunca provei.”
Ao que parece estava a pensar no queijo. De qualquer das formas, há dias voltei a casa da minha irmã e reparei que faltava uma peça ao quadro. Peguei outra vez na conversa, tentando tirar a prova dos nove. Responderam-me
“A sério, Klimt é muito bom. Muito bom mesmo.”