E o monsenhor disse “Que a paz de Deus esteja convosco.”
E eu pensei «Que se foda a paz de Deus, eu preciso é de paz de alma.»
Não foi por aqui que começou o fim-de-semana, mas bem podia ter sido. Nem sei bem quando começou.
Acho que os dias não são tão estanques como a semana nos pretende impor, já não existe uma tão definida separação entre o que são os dias úteis e os dias inúteis, os do final da semana. Os dias agregam-se uns aos outros, numa toada desfocada, numa espécie de continuidade cinzenta. E chegado o final da semana dei por mim a arrumar malas sem sequer as ter desfeito, a viajar de um local para outro, desejando no fundo um pouco de paz.
Passadas duas horas acordei. Tinha guiado durante esse tempo todo. Tinha? De certeza? Não me lembro, nem sequer da última ultrapassagem. Só quando a cara dos familiares a aproximarem-se para nos cumprimentar é que dei conta de onde estava. Outra vez longe de casa, sem ter um sítio onde chamar casa. Porque nos últimos tempos tenho andado sempre tão longe dela, a dormir aqui e ali, sem pouso definido e concreto.
O vento soprava forte e o céu estava cinzento. Na sala da casa havia uma janela enorme, com várias portas, viam-se os socalcos do terreno, as casas feias, tudo em tonalidades de sujidade e abandono. Estava um dia de Outono. Vento e frio. Um raio de sol que espreitava; havia alturas em que parecia ter retornado à época medieval, quando os olhos ficavam muito tempo presos na lareira, a contemplar a irregularidade das labaredas. E de repente alguém gritava,
«Não deixes morrer o lume… Quem é que trouxe esta lenha? Está toda podre, arde num instante…»
Éramos quinze numa mesa muito grande. Todos familiares, uns directos, outros por afinidade. Antes disso a casa foi benzida pelo monsenhor, familiar directo. Terminou.
E o monsenhor disse “Que a paz de Deus esteja convosco.”
E eu pensei «Que se foda a paz de Deus, eu preciso é de paz de alma.»
Começou o almoço na mesa grande, com conversas cruzadas e de inocência turvada. Senti-me cada vez mais longe de casa, pensei que devia era estar com o vento do Outono que anuncia a breve chegada do Inverno, devia estar no céu cinzento que permite um raio de sol de quando em vez. Sentia a terra a entrar dentro de mim, a terra húmida e fria, lamacenta. Tentei não perder de vista as sensações deste Outono, a vontade de ser vento veloz, a vontade de ser terra húmida, de ser sombra de árvore em dias de nuvens.
O monsenhor voltou a falar, a rezar qualquer coisa dos frutos da terra. No fundo acho que ninguém lhe prestou muita atenção, talvez a minha avó, sua irmã, católica devota. Os outros, católicos falsos e verdadeiros, pensavam nos frutos silvestres de um doce que não durou até ao lanche.
Dormi na cama das minhas lágrimas, na tarde sem sol.
Saí de casa, caminhei por um caminho de alcatrão que julgava ser de terra.
Regressei no banco de trás, mais uma vez sem ter tido consciência da viagem que fiz. Jantei na companhia de três pessoas, sem sequer me conseguir lembrar daquilo que conversavam, daquilo que partilhavam umas com as outras. Tinha ainda demasiado dentro de mim, demasiado à flor da pele a terra húmida, o vento frio da tarde sem sol. Do miúdo e da bicicleta que desafiava todos, na sua valentia.
Lembrei-me de ouvir alguém a falar ao telemóvel, para depois reportar a todos que a terra da minha mãe estava a arder. Contaram que tinha havido um casamento de 600 pessoas. As aldeias estavam vazias. Quem pegou o fogo, em três locais diferentes, foi o 601º convidado. As pessoas são perversas.
A tarde de vento e céu cinzento acabou em tarde de cinza, longe de casa.